20 de novembro de 2006
Pas de deux

Não pôde evitar ver-se no espelho. Pareceu a si mesmo mais forte e poderoso do que de fato se sabia e sentiu ainda mais prazer ao se deixar iludir pela vaidade. O espelho era grande o bastante para abarcar quase toda a parede em frente e era então quase natural se assistir com sonsa indiferença, como se fosse outro, em relances que foram se tornando cada vez mais longos. Na verdade, mais informação se comprimia nos segundos imutáveis: o tempo não se dilatara, sua capacidade, sim, de perceber e sentir é que se amplificara inexplicavelmente e sem nenhum esforço. O espelho o multiplicava numa espécie de luxo sensorial, tempero a mais que ressaltava o sabor de algo já de si delicioso. Provava do espelho com o mesmo gosto com que alternadamente se entregava à escuridão dos olhos fechados, sem que nunca nada das sensações se perdesse: um sentimento de larga e minuciosa inteireza o inebriava como uma espécie de lucidez.

Na posição em que estava podia admirá-la em todo seu esplendor. Sua entrega se impunha com a natural facilidade de tudo que escorre. Eram como rio e margem: ao mesmo tempo distintos e inseparáveis. Todo o vigor que ostentava nela deslizava por abismos até dissolver-se afinal em secretas contrações e dulcíssimos gemidos. Era linda assim, falsamente imóvel como o mundo, confortável em seus escuros. E ele, vertical, embevecia-se, falso dono de si e do que via.

Alongou-se até já não caber dentro de si. Transbordante, foi se curvando sobre ela, amalgamando-se a ela como um manto. Perdia-se em lassidão crescente e sem querer beijou-se querendo beijá-la, pois por brevíssimo instante não soube distinguir-se dela, tão juntos estavam. Quando, enfim, logo depois, a noite íntima abateu-se sobre eles, aconchegou seu rosto entre o próprio braço e o corpo dela e assim ficou, silencioso e atento, divertindo-se em confundir a carne dos dois como se fossem um só.

"O chafariz erguia-se contra a chuva, feliz e exultante". Lembrou da cena e quis dizer a frase que lhe pareceu sonora e exata. Mas, tudo nele agora era adiamento.