11 de dezembro de 2006
As folhas

Num gesto surpreendente, minha mão se move veloz, quase à revelia dos olhos e da vontade, e apara no ar a queda de uma folha. Apesar do espanto, continuei caminhando; mal acabara de sair de casa e estava em cima da hora para um compromisso. Enquanto seguia para a estação do metrô, contemplei com carinho a folha que minha mão acolhera. Era de um verde viçoso, ainda que uma fina camada de pó lhe ocultasse o brilho. Caíra do velho oiti em frente ao meu prédio. Bravos oitis, tão comuns nas ruas do Rio - se tornaram árvores urbanas, bem adaptadas à vida dura das metrópoles. Esse vem quase até à minha janela; já existia quando eu nasci e deve continuar aí depois que eu morrer.

A folha nada tinha de especial, igual a qualquer outra. Só não tive coragem de jogá-la fora. Talvez por um apego vaidoso ao gesto ínfimo e magnífico que a capturara no ar com naturalidade espantosa. Foi como se um outro eu, mais poético e primitivo, tivesse agido, enquanto este outro que escreve continuava sua vida, preocupado com horários e contas. Um outro eu que vive à sombra das palavras, mudo, mas atento e incansável, macaco-homem que chora admirando o pôr-do-sol.

Enfim, há sempre um tanto de vaidade em tudo que fazemos e fosse porque fosse, não queria me desfazer da folha: criara-se entre nós um poderoso vínculo, talvez porque seja no acaso que sentimos a presença de Deus.
Coloquei a folha no bolso e lá fui para o Centro cuidar da vida desse outro que escreve.

No caminho lembrei da história de uma outra folha. Aconteceu com a Mazé, minha amiga meditadora. Há na Índia a "árvore de Buda". Diz a tradição que foi à sombra dessa árvore que Sidarta Gautama se iluminou. Ao longo das gerações, a cada vez que a árvore morre, outra é plantada como uma semente da anterior. Em torno dela se construiu um parque visitado por milhares de pessoas todos os anos. E, claro, a lembrança mais cobiçada é uma folha dessa árvore. Os galhos mais baixos estão sempre nus e no chão nunca sobra nenhuma. Outro costume é meditar sob essa árvore. Foi o que Mazé fez. Quando estava quase terminando a meditação, pensou como seria bom levar uma folha da árvore. No instante seguinte, sentiu que algo lhe pousava sobre as mãos. Não precisou abrir os olhos para saber o que era.