21 de abril de 2008
Tropel

Deitado imóvel na escuridão de olhos fechados, a mente desperta e o corpo relaxado, como se dormisse e sonhasse, mas acordado: o corpo poderia saltar da cama ao menor impulso, e a mente se deixava vagar pelas memórias de um homem prestes a fazer 50 anos.

O vento uivava lá fora, agitando as árvores e sacudindo a velha janela de madeira, idêntica a do seu quarto de infância. O vento, o aconchego da casa na noite chuvosa e fria, esse ruído que o acompanhara por toda a vida: tudo tinha o peso das coisas ancestrais, como se ele mesmo fosse muitos - muitos eus e muitos outros; vivos e mortos; deste e de outros tempos. Muitos, mas uma só coisa.

E que coisa era ele que agora de súbito lembrava de uma outra longuínqua noite de vento e chuva em que dormira na cama da avó, ela deitada entre ele e seu primo-irmão (porque nascidos no mesmo dia). Ele acordara no meio da noite ou talvez nem tenha dormido. Desde muito cedo cultivara o obscuro prazer de ficar acordado quando todos os outros dormiam, imóvel como agora, vendo a escuridão e ouvindo o silêncio, nunca absolutos. Sim, desde muito cedo, espreitara o absoluto. O absoluto o atraía - e agora, às vésperas dos 50 anos, ponderava onde essa atração o levara.

Impossível dizer... Neste momento, sua vida lhe parecia tão rica de emoções e tão pobre de fatos, tão longa e logo, como gostava de dizer, que mais lhe parecia um mistério do que uma resposta. Para si mesmo parecia imenso e tão ínfimo - do tamanho do tempo e do mundo, do tamanho de nada.

Então um tropel de cavalos rasgou de repente a noite silenciosa, as ferraduras ressoando nas pedras do calçamento por longos, infindáveis, eternos segundos. Via, sem precisar abrir os olhos, que a chuva e a luz precária da rua faziam rebrilhar as pedras, o pelo dos cavalos, as roupas encharcadas dos peões. Os vultos velozes riscavam a luz tênue que entrava pelas frestas da janela do quarto da avó. Não se ouvia voz humana, apenas o ritmo exato e urgente dos cavalos subindo a rua a galope até sumir na distância e devolver o silêncio ao vento e à chuva.

Como agora, imóvel e atento, ele voltou a espreitar a escuridão e o silêncio. Quanto tempo são 50 anos? Quanto tempo dura esse tropel de cavalos?