A solidão selvagem

Pingos de chuva estalam esparsos no parapeito da janela: são os passos do animal noturno que às vezes ronda, me ameaçando o sono. Solidão é o nome desse animal terrível.

Não é a solidão do artista, a solidão do homem que lê, que escreve e que pensa. Não é a solidão do homem que medita ou que reza. Não é, enfim, solidão humana e nobre. É solidão mais ancestral e bruta, aquela que ameaça devorar os pés das crianças quando nas noites frias eles escapam das cobertas – e que só a mão dada das mães é capaz de afugentar.

Solidão selvagem, tão antiga quanto o mundo, que se alimenta do silêncio empedrado dos insones, dos que carregam pela vida o medo do escuro, do passado e do futuro.

Meio ave, meio réptil (posso ouvir o som metálico de seus passos no parapeito da janela, do outro lado da persiana fechada) ela se nutre do medo e faz seu ninho embaixo das camas dos adultos e das crianças.

Por isso, não é de estranhar que essa solidão medonha tenha vida mais confortável nas casas de família do que entre aqueles que vivem sozinhos.
Há mais camas nas casas de família. E há mais medo, quase sempre.

Mas, sim, também acontece entre os mais solitários, dessa solidão tão apavorante ser muitas vezes recebida como amiga, uma velha amiga de infância. E se já não lhe podem mais alimentar de medo genuíno, lhe oferecem o pão duro do ressentimento embebido em ironia. E assim a apascentam e engordam, lhe aparam as garras e lhe deixam as penas negras mais macias e reluzentes.

Há mesmo quem depois ganhe dinheiro expondo essa solidão domesticada à apreciação do público curioso de emoções. Quem já lhes testemunhou os recitais, conta que algumas chegam a desenvolver belíssima voz capaz de declamar versos comoventes até as lagrimas.

E como choram os filhos de família (e todos os seus) ao ouvir o canto da solidão domesticada! As almas ressentidas, vivas e mortas, resignadas ou vingativas, se ajuntam para ouvi-la e assim, de tão enternecidas, chegam a se sentirem irmãs.

Mas o que quer de mim essa solidão lá fora, à espreita? Será que sabe que não entrará? Mas talvez presuma que me faltará coragem para enxotá-la da janela com esse tempo chuvoso. Nem eu nem ela sabemos se é por compaixão ou medo que me mantenho imóvel na escuridão, os pés bem guardados debaixo do lençol.

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