Inconfidência carioca

A gente falava de Dalí e Buñuel e então de súbito o céu pintou-se de azul Dalí! Interrompi nossa conversa por escrito e aceitei o convite da janela porque aquele quadro não duraria nem um minuto.

Mas outros vieram em seguida. Riscado de traços esparsos de nuvens, o céu se decompunha no crepúsculo em muitos tons de azul que iam tendendo ao violeta sem nenhuma pressa. Música para os olhos se diria, tão comovente era! Fiquei ali, feliz com o tamanho e a cor da minha felicidade – que podia ser de todos, mas era só minha mesmo: não havia mais ninguém nas janelas.

Nem as TVs e as rádios anunciavam em edições extraordinárias: “Um azul Dalí de causa desconhecida foi localizado nos instantes iniciais do poente agora em curso e ainda pode ser visto neste momento a olho nu de qualquer ponto da cidade.”

Não, as TVs e as rádios àquela hora certamente se dedicavam ao carnaval. Ao que restou dele e que a cada ano se repete como minuciosa monotonia: as mesmas pessoas, os mesmos lugares, os mesmos nomes, os mesmos substantivos e os mesmos adjetivos, as mesmas marchinhas e os mesmos sambas – até os sambas novos são os mesmos!

Sim, leitor, é muito grave o que direi a seguir em tom de denúncia. Não duvido que no íntimo muitos já tenham descoberto a mesma coisa, mas é tão chocante o fato que relutamos em admiti-lo porque é imenso o risco de se abalarem as convicções e esperanças que sustentam a nação.

Como prova da verdade do que irei dizer, peço ao leitor que busque na TV ou em alguma gravação imagens deste último carnaval ou de qualquer outro. Mas vamos assistir a essas imagens em silêncio, sem som nenhum, do mesmo modo como ainda há pouco assistíamos ao crepúsculo.

Repare bem nesses corpos de plástico que se sacodem à nossa frente tentando quase desesperadamente simular alegria. O que sentem esses corpos, o que pensam? Eles se sucedem iguais, minuciosamente iguais, monotonamente iguais. E tristes.

Sim, leitor, o que vou dizer é exatamente isso que você já deve ter intuído: o carnaval é uma festa triste. Dói dizer, mas salta aos olhos. Impossível negar: o carnaval é uma festa triste. Uma festa triste como um velório onde revemos parentes e amigos, contamos velhas piadas em voz baixa e saímos discretamente para uma cervejinha a pretexto de comprar flores.

“Quem é o morto?”, lembrará alguém de perguntar. Todos esses corpos de plástico movidos a ambição e vaidade que se agitam em espasmos silenciosos na sua frente e que durante todo o ano você irá rever em anúncios e novelas, “cadáveres adiados que procriam”.

Mas não fale isso alto. Deixe que eles continuem acreditando. Sempre haverá os que acreditam – em carnaval, promessa de político, notícia de jornal. A eles se reserva o inferno dos bem-intencionados.
Mas cá entre nós e quem ninguém nos ouça: como é triste o carnaval. Melhor ficarmos com os silenciosos crepúsculos que são música para os olhos.

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