O perigo de estar certo

No alto, a lua lentamente é engolida pelas sombras e, de branca, púrpura se faz: lua que de mansa torna-se sangrenta.

Também em mim convivem, não sem desalentado espanto, a compaixão e a crueldade. Ainda há pouco, quando a música alta parecia deslizar no ar parado de tão quente, quis matar quem invadia assim tão sem cerimônia a minha calma. Foi um ímpeto, uma sombra. E o calor ou essa lua marcial não serviriam de pretexto: a História e as cadeias estão cheias de assassinos que começaram assim, amparados pela certeza de que agiam com justiça. Depois, nem mais de motivo precisaram para continuar matando.

A lua é afinal mais previsível. Sei dos seus eclipses, das suas fases e efeitos. De mim, sei apenas do meu esforço para conter a fera cuja violência não é menos cruel só porque deixou de ser mortal.

Não basta não matar; é preciso não desejar matar. E só não desejar matar também já não é suficiente; é preciso renunciar a toda forma de arrogância e crueldade. Não por covardia ou complacência; não por algum cálculo jurídico ou moral. Mas para abrir caminho à generosidade e à compaixão.

É difícil, dificílimo. E o maior de todos os perigos é, num confronto, se saber certo, genuinamente certo. “Protegei-me, Senhor, do perigo de estar certo”, é o que toda noite peço a Deus – porque a errar eu já aprendi faz algum tempo (o que não é pouco!). Aprendi que o erro às vezes até nos humaniza. Mas a certeza pode desumanizar aquele que a possui.

A lua, que há pouco parecia outra, de novo resplandece imensa. Eles continuam festejando, barulhentos. Nem sequer viram o eclipse.

Também em mim convivem, não sem desalentado espanto, a compaixão e a crueldade. Ainda há pouco, quando a música alta parecia deslizar no ar parado de tão quente, quis matar quem invadia assim tão sem cerimônia a minha calma. Foi um ímpeto, uma sombra. E o calor ou essa lua marcial não serviriam de pretexto: a História e as cadeias estão cheias de assassinos que começaram assim, amparados pela certeza de que agiam com justiça. Depois, nem mais de motivo precisaram para continuar matando.

3 Comentários

  1. Antonio:Antecipo: sou uma péssima comentarista de textos. No entanto, a questão da arrogância e da certeza tem sido um tema dos últimos tempos para cá. O que posso dizer é que, a despeito dos que se iludem desejando Certezas, que Deus te ouça (e a mim também).

  2. Esse seu texto aponta – pra mim -dois caminhos: o dos sentimentos mais selvagens e o da soberba.Como lidar com a selva dentro de nós ? O que você propõe é um sacrifício. Mas correto, quando se pensa em ética. Mais fácil carregar pedra na subida das ladeiras de Minas ( confira nas fotos ).Mas por certo esse controle, essa atenção para o lobo do homem livra, lavra a liberdade e o controle. E acho que só a soberba cria certezas. ‘Eu estou certo, Veja como sou superior’. Se bem que pessoas inseguras se agarram às certezas. Precisam desses minúsculos núcleos de idéias. É isso ou empacam. Viram pedra. E não haverá severino para carregá-las.O cristal do texto: ‘cuidado com as certezas’. Eu concordo com você, porque os ditadores surgem de suas convicções “salvadoras”.Mais um texto instigante. Nem é pedra no caminho, é pedrada na janela do olhar.

  3. Os desejos mais instintivos – cruéis ou não – são legítimos, sempre.O que se faz com eles é que é escolha, opção, evolução…”para abrir caminho à generosidade e à compaixão.”(Melhor escolha impossível. Espero continuações.)um beijo.

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