Um lugar aonde ir

Durante toda a vida, sua beleza fora um fardo.

Um fardo que se tornara mais e mais pesado por sua recusa em usá-la como vantagem. Até tentara. Mas a sedução desde cedo lhe pareceu um recurso de comerciantes, uma inaceitável concessão à mentira, uma espécie de hipocrisia que indicava uma carência que nunca lhe pesara. Não a esse ponto. Agora, mais uma vez, essa recusa fora tomada como afronta, porque interrompia a roda milenar de poder e sofrimento que parecia dar densidade à vida.

O desejo que sua beleza provocava nunca lhe trouxera nada de bom. Podia sentir na boca a amargura que essas palavras lhe produziam. Não precisava se ver no espelho para saber que seus olhos imensos se apagavam só de pensá-las, mas ninguém os veria atrás dos óculos escuros. Eram sua discreta couraça cotidiana. Por isso não se importava de ter pago tão caro por eles: não os perderia nunca, tão necessários haviam se tornado.

A boca amarga e os olhos apagados não lhe diminuíam a vontade de viver que nunca lhe faltara. Eram dados que aceitava como aceitava o sol forte numa rua sem o refúgio de árvores e marquises. Tinha de continuar simplesmente. Havia alunos à espera e era preciso se apressar. Agarrava-se aos fatos com mais vigor e seguia em frente. Fé era a palavra.

Aprendera que quanto maior a dor, menor o vestígio que dela ficava na memória. Claro, ninguém esquece o fato de ter sentido dor, mas da dor propriamente não restava nunca registro – ao contrário do prazer que, se muito intenso, bastava depois apenas entregar-se à escuridão dos olhos fechados para lembrá-lo.

Era então, pensava, como se a dor não fizesse sentido. Como se a dor fosse a encarnação do absurdo. E, ainda que o absurdo espreitasse a existência, era precário como toda ilusão. Se não resistisse, se não julgasse, a dor passaria e dela não ficaria nenhum traço. No entanto, se perguntava, por que escolhiam a dor? “Antes a dor do que nada”, ouviu-se pensar com uma voz que não era a sua. Antes o absurdo que nenhum sentido.

Não queria que fosse assim. Acreditava no amor e nos prazeres que dele decorriam. Já amara – perdidamente, mansamente – como todo mundo. E do amor, do amor carnal que une homens e mulheres, desse afinal não tinha queixas. Aprendera a nutrir-se dele e a refugiar-se nele – para criar sentidos? Talvez. Gostou da imagem: o amor era sua oficina. Ou biblioteca.

Agradeceu ter um amor aonde ir e seguiu ao encontro de seus alunos.

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