A vontade e o caos

A primeira vez que o vi foi há 13 anos, na época em que meu pai morreu e eu passei a ser correntista de um determinado banco. Quando ele entrava na agência sua presença era anunciada por um estardalhaço de metais retinindo ao ritmo marcado de suas passadas lentas e pesadas. O rapaz sofria creio que de pólio e usava para se manter de pé botas ortopédicas de solado alto e intrincadas armações de aço.

Os braços aparentemente tensos da concentração exigida pela marcha às vezes explodiam em movimentos descoordenados e o rosto se contraía em caretas cômicas porque não denotavam dor. Mas em seus olhos ardia uma fúria incompreensível aos que fingiam ignorá-lo para não transmitir a impressão de estranheza e embaraço que de fato sentíamos ao ver a tarefa ordinária de pagar uma conta elevar-se de repente à condição monumental do confronto entre o homem e seu destino.

A alegria e o orgulho que eu via naquele olhar furioso me contagiavam e encontrá-lo passou a me fazer um bem enorme. Porque a cada vez que o via, em ruas ou lojas, ele estava melhor, sempre melhor.

Não sei quanto tempo demorou até o dia que o vi já sem as botas ortopédicas. A movimentação frenética do corpo ainda era assustadora, embaraçosa ou comovente – segundo a generosidade de cada um – mas agora o embate entre a vontade e o caos insubmisso que nos habita acontecia livre, sem contrapesos e amarras metálicas.

Aos poucos, num tempo contado espaçadamente em anos, ele foi ganhando controle sobre o corpo até que os espasmos musculares mais pareciam tiques nervosos. Ele, enfim, dominara o mal, o enjaulara e lhe impusera uma forma humana, previsível.

Enquanto eu às vezes me comprazo entre a revolta e a autopiedade, me eximindo de toda iniciativa que me exponha ao risco, aquele homem aceitara como um dom a solidão que era sua e sobre os escombros de um corpo ergueu uma alma; tão grande, que vê-lo era para mim me nutrir. Não sei o seu nome, nunca nos falamos; mas devo também a ele um tanto do que de bom há em mim.

Fazia tempo que não nos víamos. Semana passada, eu vinha de bicicleta pela praia de Botafogo quando, de repente, cruzo com ele… de bicicleta! Sim, sim! De bicicleta! Isso significa que o domínio que ele alcançou sobre o corpo é agora absoluto!
Foi tudo muito rápido, mas tenho a impressão que ele me reconheceu e que seus olhos, agora despidos de toda fúria, me diziam: “Eu venci.”

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