A catedral de Fernando Pessoa

No dia 15 de janeiro, Tabacaria fará 80 anos de criação. Há quem considere Fernando Pessoa o maior poeta do século 20 e Tabacaria seu maior poema. Logo, Tabacaria seria o maior poema do século 20. Pode ser e pouca diferença faz. O título – e quem o atribua – precisa mais do poema do que o poema do título.

A mim encanta ter descoberto depois de tantos anos que o poema, escrito às vésperas de Pessoa completar 40 anos, é também um ‘balanço da vida’ típico de alguém que chega à meia-idade.

Falhei em tudo.
(…)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
(…)
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)

A grandeza do poema reside exatamente na maestria de Pessoa em entrelaçar o cósmico, o singular e o mundano ao longo de todo poema, passando de um plano para o outro em cortes, ao mesmo tempo, bruscos e precisos, de efeito devastador.

Esse “projeto estético-filosófico”, digamos assim, se define logo na primeira estrofe do poema

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
A parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo.

“Não sou nada/ Nunca serei nada” é uma constatação de ordem cósmica. No entanto, “Não posso querer ser nada” expõe uma enigmática interdição que repentinamente atira o poeta das alturas cósmicas às profundezas mais íntimas do plano individual: por que Fernando Pessoa/ Álvaro de Campos está proibido de querer ser algo? No verso seguinte, nova surpresa: o poeta emerge ao plano intermediário e mundano: “A parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo”, numa espécie de frágil reconciliação.

É como se uma operação alquímica se realizasse: a interdição de ser – que faz com o que o poeta não ceda à ilusão mundana de “querer ser” e se identifique com a insignificância de todas as coisas em face do Infinito – abre o espaço necessário para abrigar em seu interior “todos os sonhos do mundo”, o que identifica o poeta com a humanidade inteira. Por isso, ele pode dizer:

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,

Porque realizou o sacrifício de si para ser todos os homens. E também:

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Porque ousou ir além de pensar o que para Kant seria impensável: os conceitos de Deus, alma e mundo. Mas isso não se dá sem dor: o aniquilamento tem um preço alto:

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda

A tensão entre alma (consciência de mim), Deus (consciência cósmica) e mundo (consciência da humanidade em mim) é dolorosa e aparentemente insolúvel, ao menos no plano mundano:

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

O entrelaçamento desses planos seguirá assim, monumental, patético e terrível, até o final quando, depois dessa espécie de “iluminação precária”, o universo retomará sua aparência habitual “sem ideal nem esperança”.

Enfim, se Joyce teve um dia inteiro, 16 de junho de 1904, e uma cidade inteira, Dublin, para construir sua catedral, a Fernando Pessoa bastou apenas a tarde de 15 de janeiro de 1928 e o exíguo espaço de um quarto entre a mesa e a janela para erguer a sua.

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