Tropel

Deitado imóvel na escuridão de olhos fechados, a mente desperta e o corpo relaxado, como se dormisse e sonhasse, mas acordado: o corpo poderia saltar da cama ao menor impulso, e a mente se deixava vagar pelas memórias de um homem prestes a fazer 50 anos.

O vento uivava lá fora, agitando as árvores e sacudindo a velha janela de madeira, idêntica a do seu quarto de infância. O vento, o aconchego da casa na noite chuvosa e fria, esse ruído que o acompanhara por toda a vida: tudo tinha o peso das coisas ancestrais, como se ele mesmo fosse muitos – muitos eus e muitos outros; vivos e mortos; deste e de outros tempos. Muitos, mas uma só coisa.

E que coisa era ele que agora de súbito lembrava de uma outra longuínqua noite de vento e chuva em que dormira na cama da avó, ela deitada entre ele e seu primo-irmão (porque nascidos no mesmo dia). Ele acordara no meio da noite ou talvez nem tenha dormido. Desde muito cedo cultivara o obscuro prazer de ficar acordado quando todos os outros dormiam, imóvel como agora, vendo a escuridão e ouvindo o silêncio, nunca absolutos. Sim, desde muito cedo, espreitara o absoluto. O absoluto o atraía – e agora, às vésperas dos 50 anos, ponderava onde essa atração o levara.

Impossível dizer… Neste momento, sua vida lhe parecia tão rica de emoções e tão pobre de fatos, tão longa e logo, como gostava de dizer, que mais lhe parecia um mistério do que uma resposta. Para si mesmo parecia imenso e tão ínfimo – do tamanho do tempo e do mundo, do tamanho de nada.

Então um tropel de cavalos rasgou de repente a noite silenciosa, as ferraduras ressoando nas pedras do calçamento por longos, infindáveis, eternos segundos. Via, sem precisar abrir os olhos, que a chuva e a luz precária da rua faziam rebrilhar as pedras, o pelo dos cavalos, as roupas encharcadas dos peões. Os vultos velozes riscavam a luz tênue que entrava pelas frestas da janela do quarto da avó. Não se ouvia voz humana, apenas o ritmo exato e urgente dos cavalos subindo a rua a galope até sumir na distância e devolver o silêncio ao vento e à chuva.

Como agora, imóvel e atento, ele voltou a espreitar a escuridão e o silêncio. Quanto tempo são 50 anos? Quanto tempo dura esse tropel de cavalos?

4 Comentários

  1. A sua crônica fez-me lembrar de que quando criança me facinava ficar acordada enquanto todos dormiam..Hoje, sinto-me acordada para a vida enquanto vejo tantos ainda dormindo, mas sabe, fico contente em saber que estão apenas dormindo e não mortos.. Sabe, é de pessoas como você que este mundo adormecido precisa… Rsss dá vontade sair gritando para acordar o mundo inteiro né?!!!

  2. Ah, claro. Estarei mandando um e-mail em breve e vale constar o quanto me sinto completamente enobrecida com suas palavras.Beijos.

  3. Oi, Laís! Fico contentíssimo e envaidecido de alguém tão jovem gostar do que eu escrevo. Tentei escreve ruma mensagem pra vc pelo MySpace mas não consegui. Se vc quiser, mande u e-mail para eu colocar vc na lista do Café. Vou me sentir muito orgulhoso. Um beijo.

  4. Olá, Antonio. Me chamo Laís e venho acompanhando suas crônicas à um longo espaço de tempo. Quero dizer, às vezes ainda me sinto culpada por ter demorando tanto tempo para encontrar este Blog – o melhor que já vi em toda minha vida, sou obrigada a confessar. Vi que você já morou em Florianópolis, e acontece que eu mesma moro aqui. Tenho 14 anos e sinto como se suas palavras me influenciem de forma demasiadamente construtiva. Sinto como se meu linguajar estivesse mais rico, se é que me entende.Continue com suas crônicas e saiba que estará sempre aqui, na minha lista de favoritos com visitas diárias ao seu incrível mundo de letras!

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