A tentação de Adão

“A vida passa muito rápido”, diz a mulher numa roda de amigas no momento em que eu cruzo com elas pensando que a única lei universal de onde tudo mais deriva é a lei do menor esforço! Obrigado, minha senhora! Exatamente porque a vida é finita, tudo que é vivente se esforça para durar. Nada nem ninguém quer acabar, morrer. Nem o sol, nem a senhora.

Lembro de ter lido que Primo Levi, o poeta italiano que esteve preso em Auschwitz, se perguntava por que os prisioneiros não se atiravam nas cercas eletrificadas do campo para assim abreviar seu sofrimento. Sim, por que não se matavam? Porque o apelo da vida é mais forte que a dor. Porque “enquanto há vida, há esperança”.

E só existe uma fórmula capaz de fazer as coisas durarem: obter o máximo de rendimento com o mínimo de energia. Nisso se resume a Lei do Menor Esforço que preside desde a órbita dos planetas e o comportamento dos átomos à exploração do mais fraco pelo mais forte.

Não é, portanto, sem ironia que constato que o egoísmo é um impulso natural, demasiado natural, conseqüência direta de sermos finitos. A finitude, por outro lado, é o preço que pagamos – nós, os viventes – pela singularidade. Só Deus pode ser, ao mesmo tempo, singular e infinito. “Tudo é um” significa não só que tudo provém de uma mesma origem e partilha da mesma matéria, mas também e sobretudo que cada coisa é singularíssima e única. Há o semelhante, mas não o igual. Por mais que se assemelhem, duas coisas diferem ao menos no tempo em que cada uma surge, em sucessão. Enfim, cada coisa é só ela e ela mesma para nunca mais. E em sua inexpugnável solidão, só um desejo a anima: durar – a qualquer custo.

Por isso, a natureza é tão violenta. Por isso, o cosmos sangrento afronta a alma pura – para citar outro poeta, o brasileiro Mario Faustino, em Balada, um dos mais belos poemas que eu já li – dedicado a um amigo suicida – suicida, aliás, como o Primo Levi… Que pacto é possível entre o ímpeto de dominar e a vontade de conhecer? Quando o egoísmo cede ao amor, a essa “atenção dedicada” de que falei em outra crônica?

Minha cabeça fervilha de dúvidas e idéias enquanto caminho sob esse sol de maio que tanto amo. Dominar e conhecer. Egoísmo e amor. Nietzsche, Descartes, Primo Levi, Faustino, Bergson. Colin Wilson, Louis Pauwels, Aldous Huxley.

Experimento me manter atento, mas sem um foco definido. O silêncio e a solidão de cada coisa, esse cerne inexpugnável de que falava, seu secreto nome avesso às palavras, é o abismo onde meu olhar se precipita, voraz e ousado: cada coisa é o fruto que seduziu Adão – última pedra da criação do mundo, que a todo momento se refaz, incessante. Sigo em frente, animado de discreto júbilo: todas as respostas estão ao alcance dos meus olhos.

4 Comentários

  1. AntonioMuito obrigada pela resposta.Além de escrever bem, você é pessoa que se esforça pra me ( a mim, leitor*) ajudar a conhecer mais da vida. Porque a caminhada rumo ao conhecimento nunca é de um, mas de vários.Orgulho e honra de ser frequentadora do Café Impresso, há tanto tempo. E ser bem recebida.A leitura me torna uma pessoa melhor.

  2. Rose, vc foi direto no ponto! Essa é de fato a questão. Repare: o nobilíssimo leão ataca preferencialmente as crias desgarradas ou os adultos velhos que ficam para trás. Só em casos extremos atacará o macho jovem que se iguala a ele. Porque o ganho da vitória não lhe compensará o esforço. E assim é com tudo… Até a invenção dos motores e máquinas, enquanto a única energia foi a energia muscular humana ou animal (moinos hidraulicos ou eólicos e as velas dos barcos eram meros coadjuvantes) a escravidão foi uma instituição respeitável e aceita como “parte da vida”.O tal humanismo começa de fato com a mais radical afirmação metafísica em 10 mil anos de história humana conhecida: “Todo homem é filho de Deus”. Esse princípio de igualdade, dedutível do Gênesis onde Adão é partícipe da criação, acho q é ao mesmo temposíntese de tudo que de melhor o antecedeu e ponto de partida para uma revolução metafísica q em dois mil anos nos trouxe até aqui. Por isso, acho estúpidas as críticas ao cristianismo. mas, enfim, antes q isso se torne um post, creio q respondi sua pergunta. Ou melhor, acho q a enriqueci… rs

  3. “Esforço que preside desde a órbita dos planetas e o comportamento dos átomos à exploração do mais fraco pelo mais forte.”Por favor, quando puder esclareça: a exploração do mais fraco, na sua visada ( sua, cronista e pensador), pode ser encarada como ‘natural’ à vida?Assim sendo, o pensamento humanista iria contra essa condição da vida, ou melhor, o ‘esforço’ do qual você fala?

  4. sobre a vida passar muito rápido: “vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal.” Clarice Lispector em Onde estivestes de noite.”Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa. Por trás de todos os artifícios, só não saberás nunca que nesse exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva.” Caio Fernando Abreu em Morangos Mofados.sobre “enquanto há vida, há esperança”: “Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.” Fernando Pessoa em Cancioneirosobre egoísmo demasiado natural:”O que se dá sentido à nossa conduta sempre é totalmente desconhecido para nós.” Milan Kundera em A insustentável leveza do ser sobre minha opinião: eu gostei do texto, desde o título até a sua cabeça fervilhando de dúvidas…rsbeijos daqui…

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