Sobre a questão indígena

As tiriricas

Luciano Pires
www.lucianopires.com.br

Cerca de vinte anos atrás tive o privilégio de conviver com Orlando Villas Boas enquanto trabalhei num livro sobre ele e seu irmão Cláudio. Passei muitas horas em sua casa, abrindo caixas e envelopes, revendo fotos e documentos e ouvindo histórias e mais histórias de um dos brasileiros mais importantes de todos os tempos.

Orlando era uma figura fascinante. Seu delicioso senso de humor e memória prodigiosa hipnotizavam a todos com as histórias dos anos em que permaneceu nas selvas brasileiras como indigenista. Os irmãos Villas Boas tornaram-se respeitados no mundo todo e deixaram um legado precioso para o Brasil. Quando Orlando faleceu os índios perderam um pai. E ganharam dezenas de padrastos.

Escrevo estas linhas no calor das discussões sobre a demarcação das terras indígenas na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. E em meio ao bate-boca, me lembrei especialmente de uma das conversas com Orlando, quando lhe perguntei do interesse que estrangeiros teriam sobre as regiões demarcadas para os índios.

O velho sertanista contou que havia muitos anos o fluxo de estrangeiros na região era intenso. Que dezenas de “pastores”, com a desculpa de realizar trabalhos humanitários, estavam mapeando nossas riquezas. Em determinado momento ele disse mais ou menos assim: “Luciano, sabe o que vai acontecer? Esses ‘pastores’ vão levar jovens índios para o exterior. Vão educá-los e formá-los para que sejam os novos líderes em suas tribos. E quando retornarem ao Brasil esses líderes começarão a requisitar novas terras e a se organizar. Conseguirão demarcar reservas gigantescas e logo formarão uma ‘nação’ que pedirá sua independência. E a ONU reconhecerá essa independência. E então eles terão toda facilidade para negociar as riquezas com os ‘pastores’ que os educaram.”

Ouvi isso mais de vinte anos atrás, mas fiquei tranqüilo. Afinal, quem me contava era Orlando Villas Boas. Alguém haveria de ouvi-lo. Ele tinha trânsito no governo, respeitabilidade e credibilidade. Jamais passou por minha cabeça que Orlando, como tantos outros, era considerado por quem detinha poder como “apenas um técnico”. Não tinha mais força política para se fazer ouvir e provocar mudanças reais. Não estava incluído nos círculos “estratégicos”do poder. Quem o ouvia, quem o respeitava, quem o admirava não tinha poder. Orlando era apenas um conselheiro…

Mais de duas décadas depois suas previsões chegam perigosamente próximas da realidade. Um grupo de pessoas contaminado por uma perigosíssima mistura de ideologia com comércio – não se sabe bem qual a serviço de qual – está mudando o Brasil. Nas mãos desse grupo temas como ecologia, pesquisas com células-tronco, controle populacional, erradicação da miséria, educação, energia alternativa, liberdade religiosa, integração racial e tantos outros assuntos importantes são ferramentas para conquista ou manutenção do poder.

Esse grupo tem voz ativa. Pauta a mídia. Manipula a opinião pública. E quando isso acontece, dá no que dá: os técnicos, como Orlando Villas Boas, só são ouvidos se servirem aos objetivos do tal grupo. Então são exibidos como ícones, como os sábios que tranqüilizam e mostram o acerto das políticas e estratégias adotadas. Mas se não servirem, são tratados com falsa reverência, homenageados, aparentemente respeitados e isolados. A sabedoria de suas palavras vai-se com Pôlo, o deus indígena do vento. E ficam as Tiriricas, as deusas indígenas da raiva, do ódio e da vingança. E aí é isso que você está assistindo.

5 Comentários

  1. Bem razoável o que você fala, Antonio. Estou convencida.Amanhã na TV Cultura, se puder, veja o Roda Viva.

  2. Propriedade, soberania, civilização, aculturamento.O meu ponto inicial é o aculturamento: como esse índios vão se integrar à civilização global sem “esquecer” sua cultura indígena – e mais: tornando-se eles próprios os antropólogos, sociólogos que irão preservá-la, sem fossilizá-la em uma Disneylândia amazônica.A questão da propriedade me parece óbvia, como vc disse: a terra é deles. Quanto de terra? quem pode coprar essa terra delss? Talvez se pudesse ter um regime especial temporário regulando isso.Soberania é um conceito no mundo global da internet extremamente volátil, mas há uma soberania que me parece intransponível: a soberania individual, digamos assim. Algo ligado a herança familiar, espaços da infância, língua.Por outro lado, nossa civilização tem como fundamento dessa “soberania individual” a propriedade privada. acho bom a gente não perder isso de vista pq o marxismo de galinheiro, travestido de antropologia, gosta de fantasiar esses indios como protocomunistas remanescentes de um mundo adâmico – com a mim parece o contrário: são o q sobrou de uma civilização muito antiga, abatida pela catastrofe e o isolamento.Eu hj não faço nenhuma idealização da cultura indigena, mas é evidente q ela contribuiu e muito – tanto ou mais que a cultura negra, o que hj paradoxalmente não é reconhecido – para a formação desse “nucleo de soberania” chamado Brasil.

  3. Antonio, há índios que nunca entraram em contato conosco! Hoje cedinho ouvi um indigenista na rádio. E olha o que ele disse: “Então? Você não recebe herança do seu avõ? O índio tem a terra como herança”.Direito é Direito.Reconheço, no entanto, que o pessoal, lá de fora, está de olho nas terras dos índios. E avalio q a Soberania é um princípio do Direito que -pra mim – logo vai “pro espaço”. Não tenho opinião ainda. Sei que fico feliz com a idéia do índio lá na mata.

  4. Rose, eu acho que a politica isolacionista já foi uma prudente ocnfissão de impotência. Hj não é mais nada. Desconfio q o melhor q já se fez pelos índios foram os jesuítas que fizeram: deram a eles uma gramática. A única saída para o índio é absorver a civilização branca e com esse novo olhar resgatar sua cultura. Ou seja: o índio tem de ser seu próprio antropólogo. Preservá-los é coisa de zoológico, de Disneylandia. Pela simples razão que culturas não se preservam, elas estão o tempo todo se misturando. Foi assim que o Brasil se fez.Da mesma forma que nós “preservamos” a cultura grega sem andar de saiotes ou fazer sacrifícios a Zeus, os índios têm toda condição de absorverem a civilização preservando o que há de conhecimento real na cultura indígena. O resto me parece utopia burra do marxismo-leninismo de galinheiro que hora nos preside.

  5. Orlando V.Boas apareceu na Tv CHORANDO! havia perdido a presidência da Funai. Governo FHC. Pouco tempo depois faleceu.Uma coisa me intriga: a maioria dos índios brasileiros – lá nos primórdios da colonizaçao – não se deixou catequisar ( exceção feita à catequese do padre Anchieta). Por que raios , agora, os índios então aceitando a religião desses pastores? E Tupã? Estão flechando Tupã?Os EUA salvaram os coreanos do Sul das garras japonesas. Depois esses coreanos viraram fervorosos evangélicos. Por quê? A religião adaptava-se melhor ao capitalismo. Os livros budistas pesavam, eram de pedra…Mas e os índios? Cultura forte, Deus é a árvore, raciocínio diferente da nossa lógica…por que estão se transformando? Raios e trovões. Que volte Tupã!

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