Entre dois silêncios

“Você me alimenta de flores e eu preciso delas como de cada beijo seu”, ele pensou consigo mesmo, os olhos pousados sobre o vaso de flores que ela trouxera de manhã. Eram margaridas bem pequenas que pareciam de renda feita a mão, tão miúdas e minuciosas. E o tom amarelo delas tinha um longínquo toque de verde – exatamente como no branco das jabuticabas há um toque longínquo de azul.

De onde estava podia ver as margaridinhas e ela que dormia, encolhida na cama, ao lado do livro que lhe dera de presente. Parecia ter sido pega de surpresa pelo sono, deitada assim atravessada na cama, à cabeça bem na beira, as pernas dobradas para caberem no colchão. No entanto, estava tão calma e relaxada que não havia como duvidar do seu conforto. Lembrou-se de certas árvores e plantas que assumem formas inusitadas em seu esforço de buscar a luz que as alimenta. Mesmo as mais bizarras jamais perdiam a naturalidade.

Sentado entre esses dois silêncios – o silêncio amarelo das margaridinhas felizes, o silêncio branco dela dormindo – ele apenas olhava, reverente, quase imóvel. Seus poucos gestos se infundiam da elegância que a cena exalava. Se aquele momento pudesse durar para sempre, se pudesse erguer toda uma vida sobre o chão desses silêncios. Sabia que não, mas era já um consolo jubiloso a certeza de que a cena se imprimia pouco a pouco na memória do seu corpo e ficaria lá, como uma dessas ilhas que de repente se erguem do fundo do oceano.

Precisava trabalhar e para que o telefone não viesse a acordá-la se tocasse teria de fechar a porta. Logo faria isso com todo cuidado, mas antes queria olhá-la um pouco mais. Ela dormir em sua cama era como se dissesse “eu te amo” sem querer. Ou ao menos ele sentia assim, ele que sempre se comovera ao velar o sono das pessoas que amara. Sentia-se feliz porque sabia o quanto ela precisava dormir e também sabia o quanto ela resistia a se entregar – fosse ao sono, fosse ao amor. E, no entanto, ela dormira.

Olhou de novo as margaridinhas que ela trouxera – sabia o que elas queriam dizer em seu exultante silêncio de flores. Elas diziam por ela o que ela temia dizer. O amor, como a beleza, é às vezes um fardo. Ela, que tinha os dois, às vezes sentia-se exausta. Ainda bem que dormira.

Levantou-se e com uma delicadeza quase teatral, fechou a porta. A imagem dela dormindo, tão confiante, tão íntima de sua fragilidade, fixou-se em seus olhos e por uns instantes lhe pareceu sentir o quase inefável perfume das margaridinhas.

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