A história das balinhas

“O coração é frágil…”, me diz o rapaz de tranças rastafari e jeito de capoeira num tom de voz onde há malícia e há afeto, generosidade e uma pitada de melancolia.

Enquanto esperava para licenciar meu carro num posto do DETRAN aqui perto de casa, fui abordado por um desses vendedores ambulantes. Era um sujeito alto, com a pele branca de europeu muito curtida de sol, jeito esbaforido e cara de bobo. Além disso, era manco e carregava com dificuldade uma bolsa que parecia pesada de onde tirava uns pacotinhos que deviam ser balas.

Manco. O sujeito era manco. Na minha cabeça literária, o manco é gago das pernas. E eu tenho especial compaixão por gagos. Não sei se o sujeito me farejou essa fraqueza, mas quando se debruçou na minha janela havia em seu olhar um certo brilho triunfante: ele já sabia que eu iria comprar.

Eu não. Eu ainda não sabia. Ou talvez só faltasse acreditar. Caí de vez quando ele me disse que as balinhas eram de coco.
Tente o leitor, se carioca, cismar de comer uma cocada de repente. Eu o desafio a encontrar uma cocada que preste, assim de cara, na urgência do desejo. Duvido. Acha-se num estalo quase tudo, mas cocada que é bom, nada.

Com fluência admirável e teatral cara suplicante, ele ainda discorreu sobre a importância da minha compra para a festa de sua filha leucêmica que faria 15 anos no próximo domingo.

Claro – comprei. Tomado por comoção lentificante abri minha carteira onde havia 22 reais na expectativa de levar um pacote por dois reais. Mas no exato momento em que estendia a nota fui informado que eram “três por dez”.

E então, numa fração de segundos, eu ainda não sabia o que fazer com três pacotes de balas de coco enquanto via meus dez reais claudicarem depressa em direção ao carro seguinte. Para sempre.

Não entrarei no mérito cabalista dos números, mas senti naquele instante que fora “envolvido pelos fatos” e “me deixara conduzir” – contra a vontade, sim, mas sem resistência também – a fazer sem querer exatamente o que não queria.

Posso dizer: não existe sensação pior. Ainda bem que é mais comum em sonhos.

Com minha melhor voz desolada, comentei o caso com a banca que examinaria meu carro. E foi então que ouvi essa magnífica síntese que explica tanta coisa: “O coração é frágil…”. Ou melhor: talvez explique tudo.

Acabou o espaço e a história das balinhas vai virar novela. Semana que vem continua.

4 Comentários

  1. Perdeu o dinheiro, mas ganhou açúcar pro texto com gosto de bala de coco. Titulo de rasgar coração. Crônica de rua, camelódromo Brasil. Estupenda! Rose MPrado

  2. Bom, Antonio, quando vier a São Paulo terá a melhor das cocadas, garanto. Sei que não é o melhor dos mundos. Talvez nem por uma boa cocada é bom passear por São Paulo. 😛

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