Manifesto

O dia se acende e se apaga, se acende e se apaga, caprichoso e indiferente. Que desabe de uma vez a chuva ou o sol se firme! Essa inconstância irresoluta e frouxa aborrece mais porque imita o que há de pior nos homens. Não é nada esse dia, ora calorento e de pouca luz, ora luminoso e permeado de ventos. Afinal, como me quer esse dia? Circunspecto, de sapatos e guarda-chuva, ou jovial e confiante, de camiseta e havaianas novas – que é como me prefiro? Ah, dia! Deixe-me ser eu ou aquele que tenho de melhor. E se vier uma chuva de fato, brutal e súbita, eu a celebrarei como celebro o sol: o rosto erguido para o céu, olhos fechados e sorriso largo de puro desfrute.

Não, não… Não é para mim esse dia – que mistura hesitação e inconstância. Não combino com guarda-chuvas preventivos. Eu os perco todos. Não sou desses que saem com eles de manhã e voltam à noite para casa satisfeitos por não tê-los usado, orgulhosos de sua prudência. Ao contrário, sou dos que chegam em casa ensopados – espirrando, mas felizes. Sou daqueles que entre o guarda-chuva ou a marquise escolhe a chuva – também pelo prazer de ter as calçadas vazias de gente só para si. Não adianta, sou – e serei sempre – um desses jubilosos idiotas que acabam tragados pelos bueiros – que Deus me guie! porque eu mesmo ando sempre distraído…

Não, não… Esse dia não me merece. Melhor gastá-lo num cinema ou na casa de algum amigo que me acolha enquanto aguardo que esse dia se dissolva nas trevas que o geraram e o amanhã renasça límpido, claro – ou chuvoso, torrencial. Não deixarei que a indecisão do dia me domine. Serei eu – mesmo que isso seja muito pouco. E é – todos sabemos. Mas e daí? Pior seria merecer esse dia. “Agora não”, “Hoje não posso”, “Não sei…”. Há quem te mereça, diazinho sem-vergonha! Eu não. Certamente, não sou nada – em todos os sentidos, não sou nada e nada tenho a oferecer. Viver comigo é se expor ao sol e à chuva, é ser um pouco pedra, um pouco flor. Não é fácil e pode nem ser bom. Mas esse dia eu não quero; não sou eu.

Então, fique quem quiser com esse dia, se gostar dele. Nada contra. Aproveite para trabalhar, para por “em dia” tantas coisas em atraso. Coisas tão urgentes que delas o tempo não guardará nem lembrança. Hoje é mesmo o dia ideal pra isso… Eu vou sair. De camiseta e chinelos, vagabundo, sem futuro, sem profissão e quase sem dinheiro, “redondo e sem arestas por onde me possam pegar”. Se chover ou fizer sol, por mim, tudo bem: eu agradeço. E se ficar assim, acendendo e apagando sem muita graça, eu compreendo. Mas não mereço. Não mesmo. E só essa certeza me basta e já me faz feliz.

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