Do bem viver

Havia tempo para um mergulho. Havia tempo. Sempre há. Trazia uma calção por debaixo da calça, uma toalha na mochila e depois tomaria um banho de água doce num dos chuveiros na saída da praia. Nada do que tinha a fazer exigia mais do que uma aparência limpa e arrumada. Pecado era recusar-se o mergulho a pretexto do compromisso inadiável e comum. Deixou-se ir. Nada se perderia, ao contrário, o amor que o mar lhe devolveria em troca de sua devoção deixaria na cor da pele sua assinatura nada discreta.

Despiu-se, arrumou as roupas na mochila e desceu para a praia num passo lento e reverente, meio malandro, meio beato: a praia era seu templo porque Deus ali era mais visível.

O violento contraste entre o calor do sol e a água gélida, lhe produziu primeiro um choque, depois uma sensação de êxtase.

Deixou-se ficar na água calma e transparente, movimentando-se apenas o bastante para flutuar, só a cabeça do lado de fora, como se estivesse vestido de mar. As ondas deslizavam macias, redondas, torcendo-se cuidadosamente sobre si mesmas até alcançar a beira numa explosão de espuma. Desceu em duas ou três até finalmente decidir-se por sair para secar ao sol. Só então percebeu a brisa leve que parecia soprar do Leste. Fechou os olhos e desfrutou dela com de uma carícia humana e amorosa. Assim de olhos fechados podia sentir com mais intimidade o próprio corpo, seu lugar no mundo. Estava feliz – daquela felicidade simples feita da satisfação com o que se tem: nada lhe faltava.

Sentou-se na areia e pôs-se a observar a singela quase nudez dos passantes, seus irmãos de praia. Divertia-se amando cada um deles simplesmente por caminharem seminus entre estranhos. A beleza é rara, raríssima, mas cada um tem sua graça singular impressa no corpo que se move no ar como se fossemos todos mímicos contando com discrição e clareza uma história, sempre única e comovente. Como falam os corpos aos olhos amorosos! Crianças, adultos, velhos, homens, mulheres, negros, brancos, amarelos, mulatos: a humanidade toda e toda sua história sem fim desfilavam ante seus olhos. Sempre tudo aí, ao alcance dos olhos e das mãos. E no entanto… Adão regurgita a maçã indigesta e não vê.

Tinha tempo para mais um mergulho. Tinha tempo. Cada vez mais tempo.

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