O Líder e a História

Demétrio Magnoli, publicado em O Globo, 19.03.09

“A partir de hoje, me consumirei a vida toda ao serviço do povo venezuelano.” No momento da vitória no referendo, Hugo Chávez adicionou à paráfrase de São Paulo o seguinte: “Hoje vocês escreveram meu destino político, que é igual ao meu destino de vida.” As ideias de consagração pessoal a uma causa transcendental e de comunhão absoluta entre a vida pública e a privada definem a persona do líder revolucionário, uma figura que só deixa o poder na hora da morte.

Joseph Stalin, o “guia genial dos povos”, governou a URSS durante quase três décadas, entre 1924 e 1953. Adolf Hitler, o Fuhrer, conduziu a Alemanha desde 1933 até a catástrofe nacional, que coincidiu com a imolação pessoal, em 1945. Benito Mussolini, o Duce, liderou a Itália por mais de 30 anos, até sua execução em praça pública. Mao Tsé-tung, o “farol da revolução”, reinou no antigo Império do Centro durante 27 anos. Kim Ilsung, o “eterno presidente”, mandou na Coréia do Norte ao longo de 45 anos e, antes de morrer, transmitiu o poder a seu filho. Fidel Castro, o “comandante”, ultrapassou todos os demais, atormentando os cubanos por meio século antes de transmitir o cargo a seu irmão. Hugo I, da Venezuela, propõe-se a conduzir pessoalmente sua revolução até 2030, quando estaria com 76 anos e ultrapassaria a marca de três décadas no poder.

No plano imaginário, o líder deve eternizar-se no poder, pois é detentor de um tipo particular de carisma. Ele tem uma sabedoria indefinível, mas superior à dos demais: um pacto secreto com a História e uma consciência especial do destino de uma nação ou de toda a Humanidade. “Chávez une o que é diverso: o povo”, explica Aristóbulo Istúriz, dirigente do PSUV, o partido chavista.

O líder é infalível.

No plano político, a perpetuação do líder funciona como solução para a carência de regras de sucessão típica dos regimes revolucionários. Como o sistema político se fecha em torno do partido da revolução, a competição pelo poder se degrada em conspirações no interior do círculo dirigente.

Para evitar a crônica instabilidade, em nome de uma ordem duradoura, o líder governará até morrer. Nas palavras de Istúriz: “Na Venezuela, não há período de governo normal, tradicional.

Não há programa de governo, e sim processo revolucionário. Isso requer tempo.” Sim: muito tempo.

Para os revolucionários, História se escreve com maiúscula. Os democratas escrevem história com minúscula.

A democracia se sustenta sobre uma convicção negativa: a ideia de que a história não tem “leis” nem destino. A metáfora do “trem da História” expressa a crença dos revolucionários na existência de uma ordenação da aventura humana cuja fonte é natural, econômica ou divina. Essa crença conferelhes uma chave mágica dos portais do futuro e o lugar político especial de partido que fala em nome do progresso.

A oposição a tal partido representa uma negação das “leis da História”, um desvio que deve ser banido. Na democracia, pelo contrário, vigora o consenso de que a história não se dirige a nenhum lugar particular. Dele decorrem a crença de que ninguém detém uma verdade superior e o princípio pelo qual todos os partidos têm o direito legítimo de almejar o governo. A Venezuela se encontra num ponto decisivo da transição entre a democracia e a tirania revolucionária.

O referendo venezuelano chamou os cidadãos a dizer se aprovavam uma emenda que “amplia os direitos do povo”, permitindo a reeleição indefinida.

O ministro Celso Amorim, vergonhosamente, defendeu a natureza democrática da emenda chavista. Mas democracia não é igual a vontade da maioria.

Democracia é o regime que exprime a vontade da maioria pela mediação das instituições representativas, conserva o equilíbrio de poderes e preserva as liberdades públicas e os direitos da minoria. A vontade da maioria, sem as demais qualificações, é o fundamento da tirania. A passagem da democracia para a tirania se dá pela extinção do Estado como ente público.

No caso dos regimes revolucionários, o Estado é convertido em apêndice do partido da revolução — e em instrumento da vontade do líder.

As democracias se protegem da subordinação das instituições públicas a um líder pela limitação do direito à reeleição, uma garantia da alternância de dirigentes no poder. Mas, por si mesma, a aprovação da emenda que permite a reeleição indefinida não significa a implantação de uma tirania. A democracia se estiola na Venezuela porque o Estado se transforma em patrimônio de uma corrente política particular. O resultado do referendo reflete a identificação crescente do Estado com o PSUV.

No país de Chávez, a Presidência controla o Parlamento, o Judiciário e a comissão eleitoral. Os militares fazem a saudação chavista. O presidente da República é o presidente do PSUV. Os ministros são altos dirigentes do partido.

Os funcionários públicos são compelidos a agir como ativistas do partido. A polícia reprime manifestações da oposição.

Os recursos públicos financiam os “coletivos”, grupos de militantes partidários que atuam em projetos sociais, nas periferias, e como milícias de choque oficialistas, atemorizando opositores.

Capturado pelo chavismo, o Estado perde seu caráter público.

Segundo Chávez, o referendo é parte de “uma nova doutrina constitucional que tem como vanguarda a Venezuela”.

Processos plebiscitários costumam acompanhar a implantação das tiranias. Governos democráticos e ditaduras em crise terminal podem perder plebiscitos, mas regimes revolucionários não os perdem, pois o Estado não será derrotado no jogo em que é parte e juiz. Depois do fracasso no referendo de 2007, Chávez aprendeu o segredo para vencer disputas plebiscitárias. Basta introduzir a violência de Estado na equação política, esvaziando de conteúdo as regras que asseguram as liberdades públicas. A democracia não tem lugar no “terceiro ciclo da revolução bolivariana”.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP (demetrio.magnoli@terra.com.br)

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