É muito cedo ainda. O dia amanhacerá nublado, envolto numa névoa fria e delicada. Talvez faça sol ao longo do dia e seja possível um mergulho. Respiro esse silêncio discretamente povoado do canto de alguns passaros misturados ao esparso ruído urbano de carros e vozes. Respiro. Há muito a fazer hoje, uma porção de pequenas coisas adiadas, avisa a rajada de vento que rodopia os papéis sobre a mesa. Nenhum ato heróico, apenas o necessário para a sobrevivência. Talvez por isso se insurja a preguiça, movida, claro, pelo orgulho de achar tudo tão pouco para tão grande personagem.

Mas isso é sintoma que o café espanta, me trazendo de volta ao mundo ainda quase adormecido. Um café na xicara verde abacate. Houvesse um rádio ligado e o astrólogo diria: “Cor favorável: abacate”.

Como a xícara com os olhos – e de algum modo ela me alimenta – e bebo o café quentinho que aos poucos se espalha, me aquecendo as vísceras, um calor que me acolhe por dentro , eu útero de mim, boa sensação de estar em si.

Ontem postei um trecho de um livro sobre Cabala que descreve a gênese do universo. Um amigo me contava o documentário que assistiu no planetário de Nova York, no anfiteatro tridimensional presumo, o maior simulador de realidade do mundo, Jorney into the stars, acho que é isso, em que saimos da terra e vamos passando pelos planetas todos do nosso sistema solar, a via lactea, a nossa galaxia e então chegamos a um aglomerado de galáxias e mais adiante a um aglomerado de aglomerados de galáxias e tudo isso surge de explosões de supernovas que polinizam o espaço com sementes de planetas e outras estrelas – literalmente um jardim cósmico… como na Cabala:

“”De acordo com a tradição kabbalista, Deus gera, do Vazio da Não-Existência, além do qual Deus é Tudo e Nada, o primeiro estado de Existência Imanifesta. A partir deste Mundo Sem Fim, cristaliza-se uma região de Luz Ilimitada, do meio da qual emerge um ponto sem dimensões, chamado de Primeira Coroa.”

Somos, repare (ao contrário do que se diz), como uma gotinha pingando do alambique, calma e limpida, depois de um intenso processo de destilação. Somos o que é dado à luz, somos essa luz em forma de matéria viva, e então nossa pequenez revela nossa infinita grandeza, nossa aparente solidão um enorme compromisso.

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