O que é ser liberal

Gostar de um texto não significa isentá-lo de erros ou concordar com ele inteiramente. Gostar é sempre um estímulo, isso sim. Falo do texto de Olavo de Carvalho que comentei outro dia.(http://www.cafeimpresso.com.br/?p=2652)

O que primeiro me saltou aos olhos no texto do Olavo – depois, ponto de partida de todas as outras questões – foi a impressão de que o “Deus conservador” é transcendente – no sentido simples de “fora do Mundo” – segundo o esquema aristotélico da divisão a totalidade em duas regiões, a supralunar, ocupada por corpos perfeitos e incorruptíveis: as estrelas e planetas – e a sublunar, imperfeita e corruptível, sujeita à desagregação e à desordem, que é ocupada pela Terra. O próprio Olavo cita ao final do texto Aristóteles e São Tomás de Aquino, entre outros. como fontes dessa leitura.

Daí, me surgiu a questão: um Deus imanente poderia dar fundamento ao liberalismo (que é do que Olavo reclama a falta).

De um ponto de vista imanente (da Divina Imanência), não há essa separação radical entre “Céu e Terra”, não há, aliás, separação de fato, mas diferença de grau. Tudo uma questão de “sintonia”, digamos assim.
Deus é inseparável de sua criação ou tudo que é criado por Deus participa de sua divindade, é divino.

Há um trecho de “A rosa de Paracelso”, de Borges, que resume bem esse ponto de vista:

“El muchacho elevó en el aire la rosa.
-Es fama -dijo- que puedes quemar una rosa y hacerla resurgir de la ceniza, por obra de tu arte. Déjame ser testigo de ese prodigio. Eso te pido, y te daré después mi vida entera.
-Eres muy crédulo -dijo el maestro- No he menester de la credulidad; exijo la fe.
El otro insistió.
-Precisamente porque no soy crédulo quiero ver con mis ojos la aniquilación y la resurrección de la rosa.
Paracelso la había tomado, y al hablar jugaba con ella.
-Eres crédulo -dijo-. ¿ Dices que soy capaz de destruirla?
-Nadie es incapaz de destruirla -dijo el discípulo.
-Estás equivocado. ¿Crees, por ventura, que algo puede ser devuelto a la nada? ¿ Crees que el primer Adán en el Paraíso pudo haber destruido una sola flor o una brizna de hierba?
-No estamos en el Paraíso -dijo tercamente el muchacho-; aquí, bajo la luna, todo es mortal.
Paracelso se había puesto en pie.
-¿En qué otro sitio estamos? ¿Crees que la divinidad puede crear un sitio que no sea el Paraíso? ¿Crees que la Caída es otra cosa que ignorar que estamos en el Paraíso?”

(texto original: http://homepage.mac.com/eeskenazi/borges2.html)

O texto resume bem a tensão entre duas abordagens inconciliáveis. O rapaz, aristotélico e transcendente; Paracelso, a favor da imanência mais radical.

E esse é o problema, no fim das contas: liberais e conservadores (no caso de admitirmos a imanência como o fundamento do liberalismo) seriam tão antagônicos quanto ambos aos chamados “revolucionários” por Olavo – que, imagino, tanto podem ser ateus (Deus não existe) como gnósticos (Deus é mau). Não há, enfim, conciliação possível entre essas três formas de abordar o Mundo, Deus e a Vida.

Em duas passagens, Olavo resume assim seu ponto de vista:

“O termo “conservador” denota a adesão a princípios e valores atemporais que devem ser conservados a despeito de toda mudança histórica, quando mais não seja porque somente neles e por eles a História adquire uma forma inteligível. Por exemplo, a noção de uma ordem divina do cosmos ou a de uma natureza humana universal e permanente.”

E logo depois:

“O conservadorismo, em contrapartida, funda-se na admissão de que a ordem divina não pode nem ser conhecida na sua totalidade nem muito menos realizada sobre a Terra.”

Uma mente apressada verá contradição entre os dois trechos. Não há contradição em admitir a presença de Deus no Mundo (ordem divina) e acreditar que ela não se mostra de imediato e inteira ao conhecimento.

(Responder “Qual a natureza do vínculo entre Deus, Homem e Natureza?” é a função da filosofia – ou da Palavra, no fim das contas. A que distância e em que relação colocamos esses elementos define nossa relação com o Mundo.
Há poucas possibilidades: deus é bom, deus é mau; deus é indiferente; deus não existe. E só. Mas cada uma projeta uma metafísica, uma poética e uma política. E lá vamos nós de novo…)

O problema para mim está em admitir uma ordem divina separada de Deus, como se entre Deus e a ordem divina pudesse haver alguma perda, “Deus lá, e sua ordem aqui”.

A hipótese de que a ordem divina não pode ser inteiramente abarcada ou Deus no mundo não pode ser inteiramente posto em palavras é lugar comum na filosofia, uma “limitação” comumente aceita (As diferenças são quantitativas, digamos assim: um pouco mais disso, um pouco menos daquilo e… voilá! mais um ismo).
Mas, se palavras sucessivas não são suficientes para dizer algo que é simultâneo, há uma linguagem alegórica, alusiva, que pode orientar o sujeito a alcançar outros estados mentais capazes de fazê-lo experimentar aquilo que não poderá diretamente dizer. Assim se crê a arte e o artista.

No entendimento de Olavo – ou dos conservadores, isso não é possível: “A eternidade jamais pode ser espremida dentro da ordem temporal, tal como o infinito não cabe dentro do finito.”

Entendo que o simultâneo (o infinito) não pode ser dito em palavras sucessivas (finito). O que não significa que o infinito não possa ser vivido, experimentado e mesmo mostrado (o pedaço de cera, em Descartes, uma das passagens mais geniais da literatura).

Hoje é lugar comum admitir a presença do infinito em tudo, ou melhor, no macro e no microcosmo. Ainda creio que a melhor “definição”, a melhor palavra para descrever o infinito é “simultâneo”, supondo que no infinito “tudo é”, tudo ao mesmo tempo agora: o passado, o presente, o futuro, o possível, o impossível, o improvável e o sempre incerto momento seguinte.

O infinito tem de ser essa inconcebível simultaneidade para dar a idéia de plenitude de ser: no infinito nada cessa de ser.

Assim, se há uma ordem no mundo e se ela é divina, então necessariamente a eternidade está no mundo, se aceitamos que a eternidade é O Atributo de Deus: Deus é incriado, sem começo nem fim – tecnicamente inconcebível. mas como vemos, pensável.

Enfim, o que quero dizer, nada que seja criado por Deus é menor do que ele, nada do que vem de Deus pode não ser divino.

O mundo está inscrito na eternidade ainda que desde o mundo a eternidade não seja visível na totalidade. Ou “dizível” – como poderia dizer Wittgenstein.

Deus no mundo não é um conjunto de regras enviado por Deus fora do mundo. (Sempre me fascina lembrar que para Newton tempo e espaço eram órgãos sensoriais de Deus: Sensorium Dei)

A eternidade é onde tudo está. Não faz sentido pensar um Deus “espremido” no mundo que criou em vez de um mundo criado repousando na eternidade de Deus. E se a eternidade é a essência de Deus, segue-se que o mundo, cada coisa, traz a eternidade em si.

Um outro momento me chamou a atenção: “Por isso, em toda política genuinamente conservadora que se observa ao longo dos tempos, a ordem divina nunca é um princípio positivo a ser “realizado”, mas apenas um limite que não deve ser transposto, um critério negativo de controle e moderação das presunções humanas.

Nas Meditações, esse “princípio negativo” é o Cogito! O “principio positivo” é exatamente a idéia de Deus em mim, a idéia de infinito.

O que isso tem a ver com o liberalismo em profundidade não sei dizer. Mas esse eu seguramente auto-referendado que diz com certeza: “eu sou, eu existo”, esse eu é aquele que o liberalismo quer resguardar do estado, do tirano, da religião, do grupo. O Estado de Direito é e tem de ser o Estado do Direito de Ser e Existir.

2 Comentários

  1. A idéia de Deus imanente – simultâneo – talvez salvasse o liberalismo. Na prática, isso resultaria num comportamento ético essencial ao se reconhecer e respeitar o aspecto divino de cada ser. No entanto, Deus Imanente como fundamento das idéias liberais seria também conservadorismo? A questão é metafísica?

  2. Li o teu texto aos pedaços, entre uma coisa e outra. E, assim, aos pedaços, pondero. O liberalismo (“libertarian”) me atrai pela idéia de entender o ser humano como o senhor único do seu destino, proprietário exclusivo de sua pessoa. Até aí, tudo bem, pois também entendo o livre arbítrio como uma manifestação do amor divino. No entanto, Deus – transcedente ou imanente – é irrelevante ao conceito de liberalismo que conheço, que entende a existência humana ideal como a convivência consensual dos vários “livre-arbítrios”, justamente para “resguardar do estado, do tirano, da religião, do grupo”. No entanto, ao afirmar o homem como o “senhor” de si na “pólis” (na falta de expressão melhor), algumas questões da existência humana se perdem. A discriminalização da pedofilia, por exemplo, tema ora tratado pelos liberalistas nos USA, é baseada nesse princípio “liberalista”: a relação que existe entre um adulto e uma criança diz respeito somente à esses dois livres-arbítrios, o do adulto e o da criança e ninguém tem nada a ver com isso. Ainda que se argumente que o exercício do livre-arbítrio implica em responsabilidade e uma criança não pode ser considerada responsável, esbarra-se no direito da criança em outras escolhas “mais simples” (o sabor de um sorvete, por exemplo). Por isso concordo com Olavo de Carvalho quando este afirma que o liberalismo não responde aos vários “ismos” das questões pessoais – embora, ironicamente, se proponha a afirmar justamente a liberdade do ser. Vou continuar a pondenrar…

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