Glauber Rocha

Ontem, assisti Marcelo Madureira repetir (num seminário transmitido ao vivo pela internet) que acha “Glauber uma merda” com exceção de dois ou três filmes (lembro de ele citar “Di” e “Deus e o Diabo”). Reinaldo Azevedo concordou com ele, mas como esse não era o tema em debate, o comentário perdeu-se. Madureira apenas acrescentou que “apanhou muito por causa disso”.

Glauber é mesmo um autor “difícil”, e só é possível “entendê-lo” (melhor talvez fosse dizer  “aceitá-lo”) se o considerarmos um experimentador. Sua arte é experimental e exatamente por isso é tão instável, tão díspare. Não acho mesmo possível sequer “julgar” uma obra de Glauber “como um todo”, pois em todos os filmes grandes momentos se alternam com experiências duvidosas. Mas Glauber no cinema está no mesmo nível de  Joyce no romance ou Mallarmé na poesia.

Glauber faz um cinema que é essencialmente literário e, no sentido canônico ao menos, declaradamente anticinematográfico. E como “literato”, Glauber é muito mais um poeta do que um romancista, um narrador. Por tudo isso, já se vê que sua obra passa muito longe dos cânones estabelecidos por uma arte por definição popular e industrial, com uma estética muito bem definida e limites de experimentação também muito precisos. Por isso Glauber é, ao mesmo tempo, um fracasso de público e um sucesso (relativo) entre cineastas e artistas. Porque cumpriu a tarefa do experimentador que é ampliar os limites de sua arte ou ciência, criando o que depois será incorporado, numa versão atenuada, à linguagem.

Uma obra como “Terra em Transe” é de um radicalismo narrativo que talvez leve muito anos até ser inteiramente “apreciável”, porque é preciso que certas experiências se tornem mais comuns, se incorporem ao senso comum estético do cinema. Um exemplo: tive dificuldade para ler Joyce e Kafka, dois grandes artistas experimentais e por isso mesmo de leitura difícil. Mas seria possível conceber o agradabilíssimo  Cortázar  sem Joyce e Kafka?

O que caracteriza esse experimentalismo é o uso que Glauber faz dos tempos narrativos combinados às duas bandas de narração que o cinema oferece: o som e a imagem. Passado, presente e imaginação, História e sujeito, se misturam enquanto som e imagem se dissociam, rompendo com a regra básica do realismo no cinema que é a sincronia de um e outro. O efeito sobre a platéia acostumada com as regras narrativas do cinema e da própria literatura é devastador. A maioria irá rejeitar a sensação como incômoda. Uns poucos se deixarão levar pela novidade. Mas só um ou outro abrirá mão da obrigação de entender. Porque o efeito, por mais que o próprio Glauber pretendesse subordinado a um compromisso com o marxismo revolucionário em ascensão, era muito mais complexo do que qualquer teoria.  O Glauber cineaasta era muito maior que o Glauber teórico.

1 Comentário

  1. Tentei entender o Glauber tentando assistir a dois dos seus filmes até o final e não consegui. Achava e acho válido a veia experimental dele, sobretudo naquela borbulhante época. Diria até que talvez ninguém tenha ido tão longe como ele e por isso acho inaugurou o conceitual, digamos, na arte cinematográfica. Mas, com o perdão da colocação, e talvez pelo pouco entendimento ou cartesianismo demais na minha cabeça, penso a sua frase ao contrário: O Glauber era muito maior teórico que cineasta.

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