ínfimos e magníficos

(Em resposta a uma amiga que recebeu um poema lindo, mas ainda assim permanece um tanto fingidamente agarrada a suas mágoas. Publico porque a vaidade venceu a discrição – mais uma vez!):

“… e não há realidade vista como realidade que não nos suscite um pouco de ironia. De auto-ironia. Somos (todos) ínfimos e magníficos – e isso de fato nos deixa tontos.

Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


Por que ironia? Porque a vida em nós é quase involuntária – para horror da nossa vontade. Ou da nossa razão – nem sei bem se as separo ou não. Mas algo em nós não aceita essa esmagadora (para esse algo) involuntariedade da vida, o monumental acaso.

E Deus só pode ser Acaso e não Ordem.

Enfim, ínfimos e magníficos.

Como o discurso final do replicante em Blade Runner: clique para ver

Algo em nós não aceita o Acaso – e se Deus é Acaso, esse algo em nós só pode ser o demônio! rs
Mas é menos – ou o demônio seja esse menos!: é nosso ego querendo controlar tudo. Há um ego que quer reverter a solidão em exclusividade e assim inventa o poder: eu controlo. É, deve ser o demônio.

Então se alguém nos diz de um modo tão bonito que sente saudades de nós, se alguém pensa em nós com intensidade bastante para produzir poemas delicados, desprezar isso a pretexto de controle e represália, acho mau, acho perverso. Porque vc sabe o que sente e quer dizer não ao que sente. Não faça isso. Diga sim ao que sente – mas com cautela. Não é controle. É fazer da razão, disso que pensa e pensa o que pensa incessantemente – fazer disso mais um sentido: 0 tal sexto sentido. Cautela não é controle. Cautela é uma das formas da atenção. E atenção é amor.

Eis que vamos construindo um evangelho: Deus é acaso, amor é atenção… Bom isso, porque eu creio que a palavra pode mesmo curar.

E curar era o que queriam as palavras que você recebeu. Sinceramente, não vejo porque não aceitar.

O Acaso produz coincidências. Aceite o que Deus juntou – e isso vale para você, para ele, para mim, para todos.

O mistério talvez seja aceitar a vida, deixar que ela seja como ela é, passageira, sempre em frente, como começo, meio e fim. Estar atento, mas não no controle. Deixar-se ir, mas sempre atento ao que se sente. Não é o futuro que construímos, mas o presente.

( Evangelho tem que ter parábola. Às vezes no mar somos colhidos por uma corrente que nos arrasta para fora. Quem entra atento no mar, sabe localizar uma “boca”, e sente com o corpo todo a força e a direção da água. Mas se ainda assim o mar te toma e arrasta, mais uma vez e como sempre, o que fazer? Deixar-se ir… Não adianta lutar contra. É preciso deixar-se ir e só quando a corrente se dissipa e te liberta, vc nada de volta. Por que conto a parábola? Porque “deixar-se ir” como um turista flanando por Paris é uma coisa, mas “deixar-se ir” quando é o mar que te arrasta para morte é outra. Muito mais difícil, óbvio. Deixar-se ir atento. Eis uma boa conclusão, uma boa “moral da história”)

1 Comentário

  1. Ontem, ainda não inteiramente dormindo, mas no espaço entre o agora e o sonho… pensei em Alvaro de Campos que durante aquele espaço era Alvaro dos Montes. rs… Por isso gosto do acaso… por acaso um pouco dele aqui. E olha só, hoje “montes”de Alvaro!!! No meu ontem, aqui e lá.

    Deixar-se ir- atento. É como deixar-se ir amando. Sempre atento ao amor.
    Gostei disso. 🙂

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