Sobre a verdade

Esse texto publicado no Bacia das Almas (clique para ler) é um exemplo da crítica a partir de premissas erradas. Já me desagrada essa coisa de criar um critério geográfico para falar do pensamento. A idéia de um “pensamento ocidental” que se opõe (ou simplesmente se relaciona com ele com base nessa premissa) a um “pensamento oriental”  é até possível mas não conduz a lugar nenhum. Como diria Nelson Rodrigues, uma formiguinha a atravessa com água pelas canelas.

Se entendo bem o sentido do termo “ethos” compreendo e admito que existam “ethos regionais”, dos “povos”. Mas aquilo que se pretende “pensamento” tem obrigatoriamente de se afastar desse ethos para se impor como tal em sua pretensão de universalidade.

Universalidade que é exatamente o alvo do texto publicado no Bacia. O que se contesta ali é a afirmação “a verdade é uma só” e a não-verdade múltipla. Isso que até pode ser revestido de roupagem metafisica me parece mais uma obviedade lógica: o que é exclui como fato tudo que, por isso, não foi.  O campo do que é ou foi é necessariamente menor do que o campo do que não foi. E daí?

Onde aparentemente se quer chegar é numa “verdade plural” que assim viabilize a idéia de uma “verdade relativa”.

Não creio que seja esse o caminho.

O que eu tenho experimentado é que a verdade é profunda. Profunda no sentido de que é sempre extrair mais verdade da verdade. É como se a verdade não tivesse limites e o limite estivesse em mim, no sujeito que pensa o objeto.

Nessas horas sempre me lembro de Nietszche, canonizado na hagiografia relativista com um santo padroeiro. Em “Crepúsculo dos Ídolos” ele adverte que para entender uma “filosofia” é essencial conhecer como vive o “filósofo”.

Essa me parece a verdadeira chave do relativismo de Nietszche: limitado não é o objeto, mas o sujeito. Toda verdade é relativa a um sujeito. Há sujeitos melhor aparelhados para Física como os há para a Música, o Futebol ou o Ócio.

Há o caso exemplar de Einstein com a Física Quântica. Ela é um corolário da Física relativista de Einstein, mas conta lenda que ele não a aceitava porque “Deus não joga dados”. A questão deve ser muito mais profunda, mas até onde eu a alcanço, vejo como se Deus estivesse mandando um recado a Einstein dizendo “eu não sou com você imagina” e Einstein não ouvisse, surdo pelo Deus de Einstein.

(Deus joga dados? Todos os resultados possíveis estão em Deus. Sendo assim qual a relevância se ele sabe ou não sabe que número vai dar? qualquer resultado é Deus, está em Deus. Há uma “economia do Universo” capaz de absorver qualquer resultado.  O resultado faz diferença no tempo sucessivo onde seus desdobramentos desenharão um traço na eternidade, como o dedo na areia ou na água. Ou seja: faz diferença para o homem e não para Deus)

* * *

A coisa foi piorando, mas ilustra bem o que eu quis dizer no trecho acima. Cito:

Essa visão de mundo tem consequências tanto positivas quanto negativas. Ela inspirou a maior parte das investigações intelectuais, as normas de debate racional e também uma determinação a expor e  combater erros. Porém gerou também arrogância, intolerância, incapacidade de apreciar as diferenças, a tendência a associar diversidade com aberração e também muita violência.O pluralismo cultural contesta essa visão de verdade e de virtude. Ele enxerga a razão como uma qualidade não semidivina ou transcendental mas humana, com tudo que isso implica. Como parte do pressuposto de que a cultura vem embutida nos seres humanos, ele sustenta que a razão é moldada e estruturada pela cultura.”

O que me irrita mais é esse tom de profunda inocência com que o sujeito afirma obviedades do tipo “tudo tem seu lado bom e seu lado ruim”. É certo que sem a admissão de que há verdade não haveria ciência. É certo também que esse “acesso à verdade” exige um apuro de procedimentos e linguagem, uma técnica, digamos assim.

Por outro lado, afirmar que essa “técnica é capaz de gerar “arrogância, intolerância, incapacidade de apreciar as diferenças, a tendência a associar diversidade com aberração e também muita violência” é de uma sem-vergonhice a toda prova, porque essas são “qualidades” humanas que podem ser, digamos assim, “despertadas” por qualquer coisa – do “pensamento oriental” ao “futebol”.

Não se combaterá a “arrogância, intolerância, incapacidade de apreciar as diferenças, a tendência a associar diversidade com aberração e também muita violência” simplesmente trocando de “visão”. Ao contrario, esses talvez sejam  exatamente os limites de que falava Nietszche ( N. é um moralista). Esses, aliás, são os inmigos PERMANENTES não só de qualquer pensador, mas de qualquer ser humano.

Logo em seguida o autor produz outra sem vergonhice: “Como parte do pressuposto de que a cultura vem embutida nos seres humanos, ele sustenta que a razão é moldada e estruturada pela cultura” – ou seja, deliberadamente o autor confunde objeto e sujeito. Ou melhor, não há objeto, nem sujeito – o que há é cultura. O que se quer negar é que exista uma relação de verdade entre a consciência humana e o mundo, de tal modo que a consciência seja capaz de “ler” o mundo e atuar positivamente sobre ele. Bom, isto está mais do que demonstrado (e que seja a matemática a linguagem adequada de acesso está aí a bomba atômica como exemplo).

É certo que as culturas forjam suas linguagens de acesso ao mundo. O quanto são materialmente bem sucedidas no intento de modificar positivamente o mundo é uma medida aceitável para entender a diferença entre as culturas – se afinal trata-se mesmo de entender “diferenças”.

Pouco se fala do quanto foi importante para o “pensamento ocidental” o suposto de que Deus e o homem têm uma relação pessoal e verdadeira. Sem a noção cristã dessa relação direta entre Deus e os homens não haveria ciência. A ciência deriva da idéia de o Mundo e a Vida são obras de um só Deus que é absolutamente positivo e que a Consciência é capaz de “dialogar” com ele por meio de suas obras, pelo puro entendimento de suas leis universais.

Sem esse “universalismo” é impossível, aliás, ver essas outras culturas como “iguais”. A própria ideia de igualdade e diferença supõe essa universalidade q as una.

* * *

Há outra malandragem no texto. A todo hora ele oferece definições de conceitos do “campo adversário” que não são verdadeiras, mas servem para fundamentar as objeções que eles lehes imputa. É como contestar algo que não foi dito. Por exemplo esta oposição – “a razão como uma qualidade não semidivina ou transcendental mas humana” – só existe na cabeça do autor.

E o que ele quer dizer com “a cultura vem embutida nos seres humanos”? A frase completa é ainda mais enigmática: “Como parte do pressuposto de que a cultura vem embutida nos seres humanos, ele (o pluralismo cultural) sustenta que a razão é moldada e estruturada pela cultura”.

Lembra vagamente Kant, com a cultura cumprindo o papel do espaço e do tempo sobre a razão. Então não seria a razão que forja a cultura, mas a cultura que molda a razão – numa inversão que contraria qualquer lógica trivial do tipo “o rabo abanando o cachorro”.

E de novo tolice revestida de doçura: “Para o pluralismo cultural o mundo pode ser entendido de diferentes modos dependendo de nosso aparato, linguagem, interesses e propósitos conceituais, das perguntas que fazemos e do tipo de conhecimento que buscamos e valorizamos.”. Sim. OK, e daí? Todo mundo sempre soube que, enfim,  a qualidade da obra depende da qualidade das ferramentas e dos artesãos. E é exatamente isso que produz a superioridade de umas sobre outras. Superioridade inequívoca mas jamais permanente como uma lei divina como a História mostra: exemplos de culturas hegemônicas sendo superadas por êmulos periféricos é o que não falta.

A tolice que dá fudamento a isso é a idéia de que culturas são coisas imutáveis – e portanto preserváveis. No caso aqui, a coisa é ainda pior: ela é uma fatalidade biológica, se entendi o que quer dizer o autor.

Enfim, retornando ao ponto: as culturas são diferentes e por causa dessa diferença elas se organizam segundo uma economia em que sabe mais pode mais.

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A questão central parece sempre nos escapar. A questão central é: como passar da competição à colaboração, do poder ao amor?

Eu acredito que é difícil porque antes de tudo é antinatural. Mas isso é outro papo.

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