O passarinho insone

Que passarinho é esse cantando tão fora de hora? E nem “cantando” se pode dizer desse “fiuí” monótono e triste que ele repete sem parar. O que lamenta o passarinho insone? Talvez estranhe a solidão sem abrigo na noite chuvosa e fria. Talvez seja fome. Talvez reclame da manhã que não chega e demorará a vir.

Da minha janela, uma das poucas ainda acesas, não vejo o passarinho insone, mau seresteiro de suas tristezas. Terá acordado de um sonho ruim? Perdido o rumo de casa? Será um jovem pássaro inexperiente ou um moribundo próximo do fim? O que faz acordado a essa hora, afinal?

“Fiuí”. “Fiuí”. “Fiuí”. E ninguém responde.

Mas, eis que o canário do vizinho se põe, ele sim, a cantar – enérgico, cheio de gorjeios e autoridade – como um síndico que reclamasse do barulho. Do conforto de sua gaiola, repetiu seus trinados, teceu uns improvisos a guisa de argumentos e não é que o passarinho insone se calou?

É, se calou mesmo. Terá partido ou simplesmente resignou-se à sua solidão tão sem talento? O fato é que o canário devolveu a noite ao silêncio.

Não, não… Passado um tempo, ouço o que me parece um trinadinho meio apagado como se fosse o ronco do canário que adormeceu aborrecido. Mal comparando, parece um pombo mais circunspecto e afinado – “frooo”, “frooo” – resfolegando. E então, de repente, o canário-síndico solta uns gorjeios curtos como se resmungasse, sonhando – sonhando talvez que fala a uma assembléia de canários sobre o absurdo que é um passarinho insone vir atrapalhar nosso sono engaiolado cantando fora de hora.

(Desnecessário dizer que toda a minha simpatia está com o passarinho insone que expressava com bravura sua tristeza sabe-se lá de quê. Não havia raiva no seu fiuí que nem incomodava tanto, antes convidava a um gesto qualquer de carinho – quem nunca pegou com delicadeza quase temerosa um passarinho na mão e lhe afagou com o dedo a fofa penugem? E eu então lhe sussurraria com hálito terno: “Dorme, passarinho, dorme…”. Não havia raiva, eu dizia, em seu coraçãozinho de passarinho vagabundo e insone – era só um lamento perplexo que ele repetia e repetia – talvez na esperança de uma hora entender e assim aliviar sua tristeza. Ou talvez – e mais provável, visto que o entendimento é uma ilusão humana que não parece compartilhada pelos pássaros – apenas esperasse que ela se gastasse pela simples repetição até alcançar o esquecimento – o genuíno perdão, o verdadeiro entendimento. )

6 Comentários

  1. vc “conhece muito minha alma e meus anseios”..como disse a Clarice por aí! 🙂
    Essa crônica é uma das mais belas q vc escreveu! Orgulho do meu amigo tão querido e tão poeta!

  2. Não reparem – ou melhor: reparem! tenho feito pequenas mudanças no texto… Tenho uma intenção em mente, mas não tem graça contar – ao menos não assim de cara, publicamente… mas pra quem perguntar, eu conto – ou insinuo, negaceio, dialogo…

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