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Como algo pode ser ao mesmo tão belo e tão triste?

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Deitado na cama, na escuridão de olhos fechados,  a alma desperta no corpo inerte, pensava, depois, por que me surpreendia encontrar beleza e tristeza juntas; por que me surpreendia que algo triste pudesse ser belo ou que algo belo pudesse ser triste. Pouco me importa a objetividade desses sentimentos, se estão em mim ou nas coisas mesmas, tolice que importa apenas a uma certa filosofia, digamos, mais moderna. A mim, em minha cama, basta a íntima certeza de que sou, como tudo mais, irremediavelmente só; mas, como que por milagre, há em mim uma qualidade qualquer que chamo – chamamos – de compaixão, capaz de me ligar tão profundamente a qualquer outra coisa – uma paisagem, um animal, um ser humano – que então somos como que um, sem deixarmos de ser dois.  E isso, esse estranho – e mesmo, às vezes, tão impróprio – milagre talvez seja o que mais exatamente nos distinga, a nós, seres humanos, de tudo mais: essa compaixão – chamemos assim – fundamento e fonte tanto do conhecimento quanto do amor.

Enfim, não é isso que me importa (porque isso não é de fato um problema). Ali, de olhos fechados na escuridão, interinamente morto (hipervivo ou inframorto), eu pensava que no Mundo, de fato, nada é exatamente  triste e tudo é belo – a despeito do horror que nos cause. É a indiferença do inorgânico de que tenho falado ultimamente.

É na Vida que a tristeza aparece. Primeiro, porque na Vida tudo morre, tudo tem fim. Dizem que entre os animais, só o homem sabe que vai morrer, só o homem tem a tal “consciência da morte”. Nunca interroguei os animais a respeito (partilhamos o pudor sobre certos assuntos), mas a impressão que tenho é que essa idéia é absurda. Tudo que é vivo sabe, de um modo ou de outro (ou do modo próprio a sua espécie) que morrerá. E que a morte venha aos poucos sob a forma da decadência física é um sofrimento que, duvido, escape a qualquer animal.

Em contraponto, a Vida nos exige durar. O que significa alimentar essa máquina incessante que é o corpo. Então quase todo o tempo da Vida transcorre na manutenção da própria Vida. Por isso é possível dizer que o sentido da Vida é a própria Vida.

Há então essa tristeza – ou, até menos: esse desapontamento prévio: “Pena que acabe.”  ou “Pena que esteja acabando.” – que é comum, penso, a todos os seres vivos.

E entre nós humanos acrescenta-se outra dor: sentimos também a morte do outro – e todos os seus correlatos: a perda, a separação, a despedida. Tudo isso são mortes, pequenas mortes.

É por essa via que começo a especular como algo pode ser triste e belo ao mesmo tempo. Primeiro, óbvio, porque algumas coisas belas podem me lembrar a ausência de alguém que se queria próximo, naquele instante, para compartilhar conosco esse gozo. É isso que chamamos de nostalgia, de  saudade.

E é esse sentimento que vai produzir coisas reais como essa música de Puccini, Mio babbino caro/ Meu paizinho querido. Algo que é realmente triste e belo, intencionalmente triste e belo, capaz de parar os passarinhos e  fazer chorar os peixes.

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Engraçado, lembrei agora que o violino era o instrumento predileto de meu pai, de mio babbino caro. E fora por isso que eu selecionara no Accuradio Classical, na opção de seleção por instrumentos, o violino; o que me trouxe essa ária de Puccini, que eu não conhecia e me emocionou profundamente, sem que eu me desse conta de seu título senão depois,  e dessas relações todas senão agora, quando escrevo.  O que bem pode ser tomado como prova ou exemplo do que eu digo acima…

 

3 Comentários

  1. Ouço, leio, desfruto..¿qué otra cosa se podria decir?. Nada. Está todo ahí, en música y letras.

    Es tan lindo leerte.Gracias!

  2. Hoje você me fez lembrar o dia em que o li pela primeira vez lá no Releituras.com. ; quando me propiciou um “encontro” com Meu Pai.., enquanto dizia entre outras coisas: “… mas há memórias tão vivas dele em mim que às vezes é como se apenas estivéssemos morando muito longe um do outro e as condições de comunicação fossem precárias. Mais do que tudo, sinto falta de sua voz.” (…) Lindo aquele texto.
    O de hoje (uma iluminada reflexão sobre a Vida.!) mexeu na mesma saudade. “Beleza e tristeza juntas” outra vez!
    E a música … fica ainda mais encantada com a sua poética definição: “capaz de parar os passarinhos e fazer chorar os peixes”.

  3. Belo, este teu texto: um ahc perfeito. Ontem mesmo, depois de te ler sobre as plantas, fiquei pensando na maravilha do autotrofismo e morri de inveja; no entanto, vejo agora que tb há beleza nessa nossa vida de dependências e autossuficiências (essa nova ortografia é um horror!) extremas. Afinal, tudo é um (e a compaixão talvez venha desse vago sentimento de unidade. Who knows?). Por fim, no início, a minha ária favorita.

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