munda cor meum

“Munda cor meum, ac labia mea, omnipotens Deus…”.

Sonhei com essa frase: munda cor meum. Ela se repetia em minha mente, enquanto o sonho transcorria,  como a voz interna que nos acompanha oculta sob as ações cotidianas. Munda cor meum: purifica meu coração. É um trecho da oração recitada em silêncio pelo padre na missa antes da leitura do Evangelho: “Munda cor meum, ac labia mea, omnipotens Deus, qui labia Isaiae Prophetae calculo mundasti ignito, ita me tua grata miseratione dignare mudare, ut sanctum Evangelium tuum digne valeam nuntiare.”

Desde a primeira vez que li o Ordinário da Missa, me agradei desse verso (chamemos assim) que me soa tão solene. E que logo se estende do coração aos lábios: ac labia mea. Purificação apararentemente tão custosa  que é preciso recorrer ao Deus onipotente para cumpri-la. E é engraçado que o sonho era uma sequência bastante lógica de situações (algo absurdas se lembradas agora, mas perfeitamente  normais no sonho) e em todas minha ação estava possuída de alguma ambiguidade, de alguma intenção oculta, não maligna ou maliciosa, mas oculta, isto é, que não queria se deixar transparecer dos meus atos e gestos. Munda cor meum. E a frase se repetia. E é estranho que agora, enquanto escrevo e mais vivamente me recordo, a impressão é que a voz (que era a minha própria voz) não estava exatamente no sonho, mas se dava em outra dimensão ou em outro sonho, isto é, a voz não era ouvida por mim no sonho, mas era minha voz como que comentando o sonho (como a voz off em um filme). Não tenho certeza, mas era como se a voz minha estivesse mais do lado da vigília e o sonho do lado do sono. Só sei que a frase ia se repetindo enquanto as ações transcorriam numa sequência bastante lógica, sem aqueles sobressaltos tão comuns aos sonhos. Sim, lembrando agora, é fácil perceber que havia um toque de absurdo em tudo. E essa “suave sensação de absurdo” talvez esteja sempre lá, nos sonhos, para nos lembrar que assim é a vida, que também atravessamos os dias – ao menos eu os atravesso – com essa “suave sensação de absurdo” a me manter o coração levemente sobressaltado, em relativo desconforto…

Munda cor meum. Enquanto isso, até lá, o coração dividido se esgueira tentando afetar elegância e descaso entre as paredes invisíveis do labirinto de ambiguidades e suaves absurdos, se esgueirando como se dançasse, escondendo sob o sorriso o silêncio de perplexidade, amorosa perplexidade: “Será isso mesmo?”, ele não pergunta, pois o que haveria depois que tudo desabasse?

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