Meus monstros

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Foto Paloma Perez – Rio de Janeiro, 2016

Na infância ele me evocava um monstro bíblico, pré-histórico, que inexplicavelmente também habitava as escadarias do cinema Azteca: a mesma bocarra, os mesmos olhos enormes e esbugalhados. Me intrigava essa semelhança. Me intrigava que pudesse haver um fio invisível unindo um abridor de latas, as imensas figuras de pedra na porta do cinema da esquina e um ser, invisível de tão imenso, que logo viria a me atormentar em sonho. Era tudo muito estranho e eu sequer sabia como articular essa estranheza numa pergunta. azteca2

Todas as vezes que passávamos em frente ao Azteca – e isso acontecia quase todos os dias – eu me soltava da mão de minha mãe e corria para entrar numa das bocas eternamente abertas daqueles monstros assustadores, mas inofensivos em sua imobilidade de pedra.
Eu até sentia por eles uma certa compaixão porque, além de imóveis, eram todos banguelas. Eu gostava deles.

Mas, em casa, à noite, a simples suspeita de que eu poderia voltar a sonhar com aquilo que eles evocavam me fazia querer perder o sono – sempre sem sucesso. Era um pesadelo que se repetia com indecifrável regularidade. leviatanEu mesmo não sabia – e nunca soube – narrá-lo, mas o resumo da história era que uma baleia imensa engolira a cidade inteira e aparentemente ninguém, a não ser eu, percebera.  Em dado momento, eu não sabia mais se já fôramos engolidos, se estávamos na iminência de sê-lo ou se de fato seríamos.
E isso me provocava uma angústia tão profunda que eu sequer conseguia acordar e quando finalmente o fazia, despertava, coberto de suor, às vezes aos gritos, às vezes até com febre. Na verdade, a despeito das imagens – que na vaga lembrança de hoje me pareciam triviais – eu sonhava a angústia.

E havia a versão doméstica desses monstros, o abridor de latas, que eu tanto queria aprender a usar – tarefa que se complicava ainda mais porque eu era canhoto. Ele me divertia e acalmava. Talvez porque vivesse resignadamente na gaveta forrada de feltro verde do armário e como um bom animal de estimação nos servisse de tempos em tempos. Em nenhuma outra casa havia um abridor como aquele. Como não havia outro cinema como o Azteca. Nem ninguém tinha um pesadelo como o meu.

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