A serragem

Saio em busca de serragem para montar nosso presépio. Para quem trabalha com madeira, serragem é lixo. E eu preciso de pouco, muito pouco, algo como duas mãos cheias. Só. Entrego-me então, na cálida manhã de novembro, à boa vontade dos homens do improvável bairro de Copacabana. Digo improvável porque me parece quase impossível encontrar uma serraria nos poucos quarteirões que me disponho a percorrer num bairro de aluguéis tão caros.

De cara, indago ao chaveiro de um pequeno quiosque na esquina de duas ruas transversais. Empoleirado num banco alto do lado de fora ele me ouve com uma simpatia redonda como seu rosto nortista e responde com um  ligeiro sotaque que não esconde a saudade da infância pobre mas feliz: “Vai ser difícil…”, ele diz, confirmando minha impressão. “Mas ali pelos lados da Siqueira Campos…”, ele especula, querendo ajudar. Eu explico que estou indo na direção oposta e que não me valeria a pena me desviar tanto, porque moro no Catete onde sei de pelo menos três serrarias. “É mais curiosidade mesmo…”. Ele ri e nos despedimos.

Dobro no que acredito ser o famoso Beco das Garrafas, que se for, de beco não tem nada, é só uma simpática travessa larga, exclusiva para pedestres e cheia de pequenas lojas, quase um condomínio a céu aberto. Sem procurar encontro uma loja que trabalha com molduras e presumo que não lhe falte serragem. Não custa tentar. Olho da porta e não vejo ninguém. Fico olhando aquela “bagunça organizada” cheia de pó quando um rosto desconfiado desponta lá no fundo. Ele vem me atender, mas me olha com estranheza, como se eu fosse um intruso. Pergunto se ele tem serragem. Ele diz que sim e que não, porque pegar a serragem seria uma tarefa que lhe daria muito trabalho nesse momento. Ao menos, foi o que deduzi do que ele me disse, porque de fato não entendi bem, mas senti que era melhor não pedir explicação. Era como se uma batalha interna estivesse sendo travada discretamente dentro daquela alma, um lado querendo me ajudar e o outro, não. Senti um pouco de pena do sujeito. Sua cara também era redonda, mais de gordura do que de nascença, era vermelha de sol tomado por descuido e lhe faltava alegria. Mas ele também queria ajudar: “Volta mais tarde…”. “Daqui a umas duas horas eu passo aqui…”. “Ah, não! Só lá pelas quatro da tarde…”.

Não, não queria ajudar. Ou por outra, até ajudaria se não lhe desse o mínimo trabalho. Se fosse, enfim, algo destituído de qualquer mérito. Algo que fosse menos do que uma esmola. Dito assim até parece que o julgo um mesquinho daqueles de Dickens. Mas não é isso, é algo mais triste, que tomara, não seja um jeito de ser, mas só resultado de uma noite mal dormida.

Então nem adiantaria explicar – para ele e para mim – que a gratidão é uma oração silenciosa que alguém faz por nós, mesmo sem que saibamos. Sou grato aos dois homens de rosto redondo que me deram esta crônica. A serragem vou buscar agora, aqui no Catete mesmo.

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