De palavras e flores

Certas combinações de palavras são capazes de materializar rosas no ar, sugere a Cabala. Mas dizê-las teria agora o mesmo efeito de comprar as rosas no florista: tornar evidente um amor que ainda precisa ser discreto. Melhor então fazê-las de letras escritas no papel, crônica-buquê de palavras-rosas que trescalam mudas o que só o perfume-gesto é capaz de expressar de fato. Porque dizer é sempre tão fácil ou tão difícil, em face do gesto, verdadeiro até se involuntário.

Então, entre a fala e o gesto, a escrita se insinua, síntese desejada e possível, miúda eternidade dócil aos sentidos. E se os sentidos se atiçam, memória e imaginação inebriadas, logo se confundem e se descobrem um, como dois amantes. Que importa passado ou futuro se sempre só tivemos o presente? O tempo incerto dos amantes é o nosso tempo. Haverá outro?

Sim, há esse tempo que descobrimos pouco a pouco, presente que se alastra e nos enche de surpresa: rugas se dissipam, músculos se tornam mais elásticos, gozos se recriam mais intensos.

E de nós mesmos nos libertamos.

De “sim” e “mais” são as pétalas que forrarão nossa cama quando as palavras-flores desta crônica-buquê finalmente se desfizerem em gestos de verdadeira festa.

“Tudo é bom”, “tudo é possível” serão as rosas-frases que restarão intactas para enfeitar nosso descanso.

* * *

Era pra ser a dedicatória em um livro cujo título guardarei segredo. Mas como sempre acontece quando se trata de nós, a coisa tomou um rumo inesperado – modo divertido de aprender a aceitação e a entrega.

Como se trata de nós, “em nenhum lugar se passa tão suavemente da realidade ao sonho”. E no sonho tudo se encaixa melhor quando está fora do lugar. A dedicatória pode ser então as rosas que não estão no vaso.

Sobre relacionamentos

Uma amiga jornalista me pediu para dar um depoimento numa matéria que está fazendo sobre relacionamentos. Antecipando-se a minha aversão a indiscrições, ela avisou que trocaria o nome e o local de origem para garantir meu anonimato.

Topei – para ajudá-la e por curiosidade também.

“Por que você sumiu de um relacionamento?”. Era a pergunta única, seguida de alguns esclarecimentos. “Pode ser de uma ficante ou namorada. O que interessa é explicar o motivo. Por exemplo: “Ela era ruim de cama”,”Ela fumava”, “Ela queria casar”, etc.”

Revi, como um afogado, rapidamente minha vida toda. Não, nunca sumi de um relacionamento. Todos os meus relacionamentos acabaram mesmo, aos poucos, sofridamente, com idas e vindas que anunciavam um fim que não chegava nunca.

Isso não me torna melhor ou pior do que ninguém. Acho igualmente nobre, perverso e fútil tanto aquele que sai para comprar cigarros e não volta mais, quanto quem se agarra desesperadamente a um amor morto, mas ainda morno.

De certo modo, até invejo os que são capazes de sumir, desaparecer no ar sem dar notícias. Digo “de certo modo” porque é a mesma inveja preguiçosa e sonsa que sinto de quem pega onda ou sabe ganhar dinheiro no mercado financeiro: não moverei uma palha para me tornar um igual.

Também nunca houve uma razão assim tão exata ou tão vulgar para que um relacionamento terminasse. Aliás, nenhum relacionamento acaba, mas vai se acabando pela soma de pequenas razões quase invisíveis, que vão se acumulando, acumulando – como a gordura num coração doente. Uma palavra aqui, outra ali; um gesto, uma ausência, um fato… Só de lembrar pode doer.

Por outro lado, quando se trata de “ex-possíveis relacionamentos”, “ficantes” que melhor seriam definidas como “passantes”, recorre-se com facilidade a argumentos simplórios para explicar um afastamento. Impossível elevá-los a condição de causa: são mera justificativa retórica, sem nenhuma densidade que se oferece aos outros.

Porque o não gostar é tão insondável quanto o gostar – só dói menos. Não fosse assim, terreno marcado por diferenças e constrastes inexplicáveis e ininteligíveis, se o amor fosse, enfim, sempre igualmente intenso e fácil, nem sequer existiria. Se desse no mesmo fazer sexo com qualquer pessoa, acabaríamos não fazendo sexo com ninguém. Porque o amor é essa busca do raro, do que está além. Sexo ou amor não os distingo: cada um faz sexo com o amor que tem, não pelo outro, mas dentro de si. Exatamente por isso ele é tão vário.

Então, para resumir: um relacionamento longo acaba em geral pelo ácumulo de incontáveis detalhes pequeníssimos ; e um relacionamento não anda por uma profunda antipatia que jamais se conseguirá explicar de fato.

Penso assim não ter respondido com minuciosa precisão a pergunta de minha amiga.

Utopia de um homem só

Existe uma hora certa para tudo. É simples: a hora certa é sempre agora. Sempre. Guarda bem isso, Antonio, para que não vaciles mais. Ou pior: não te precipites. Pois, se a hora certa é agora, não é preciso ter pressa.

Seja firme e discreto, discretíssimo: “A hora é agora!”, você dirá em silêncio para si mesmo. E então terá começado o que um dia talvez aos outros parecerá um milagre. Nesse dia, não revelarás que os milagres acontecem, sim, mas muito, muito devagar (como já reparara Paulo Mendes Campos). E não será por modéstia que guardarás o segredo, mas por respeito à necessidade de ilusão que todos também carregamos enquanto não nos ocorre aprender que a hora certa é sempre agora e que só por isso não é preciso ter medo, nem pressa.

Aprender não como quem lê ou escreve uma crônica, pausa entre os muitos afazeres de um dia repleto de repetições, mas aprender no corpo, esse outro nome, tão esquecido, que a alma tem.

E se fores chão para essa idéia de que a hora é sempre agora, ela há de vicejar e espalhar raízes por todo teu corpo até se tornar uma árvore repleta de frutos e sombra vasta onde o tempo abolido virá descansar seus sonhos de morto.

Livre finalmente, corpo e alma reconciliados (como dois vizinhos que nunca antes haviam trocado mais do que saudações protocolares), à calma atenta que, presumo, te habitará então chamarás de felicidade.

Somente aqueles que te amam genuinamente perceberão a mudança e comungarão do teu corpo e de tua felicidade. Os outros seguirão crendo, quando muito, que, como todos, envelheces. É verdade, só não percebem o quanto de ironia há nisso…

Eis, enfim, a detalhada descrição da utopia que deve animar teus dias doravante, Antonio. Não há necessidade de mais palavras. Logo esta crônica cairá no esquecimento, como tudo mais. Mas se tu mesmo souberes cumprir o que agora escreves, profeta de si mesmo, já terá sido uma vitória: a hora certa é agora para os que aprendem a suportar a lentidão do milagre.

O altruísmo sonso

O tamanho do mundo, a quantidade de gente, a variedade das coisas. Tudo tão singular a ponto de quase exigir um nome. E, no entanto, simplíssimo: a matéria é a mesma e as formas seguem uns poucos padrões. É de abismar a beleza que disso resulta. A beleza e o mistério.

Então como pode a vida às vezes ser tão chata?

A lista de razões é imensa e quase todas são produto dos humores que animam os olhos de quem a vê. Mas é inegável que também ocorre de a razão da chatice ser os outros. E deles, reclamo menos do egoísmo do que do altruísmo sonso.

O egoísta eu posso entender – é meu igual. Seu egoísmo tão miudamente humano chega a ser singelo. Mas a que alturas celestiais se eleva alguém que imagina ter em mente a solução para os problemas do presente, a leitura correta do passado, a visão profética do futuro? O que tem na cabeça o sujeito que se acredita em condições de legislar sobre a vida de milhões de pessoas em nome sabe-se lá de que princípios, quando acontece de existir algum? Enfim, que imagem de si mesmo tem esse bípede, em tudo tão parecido com um homem qualquer, que diz desejar o poder com a única intenção de salvar o mundo, o país, a mim?

Dizem que o poder corrompe. Eu acho que o simples fato do sujeito desejar o poder já é sinal de uma alma corrompida. Machado de Assis, em Esaú e Jacó, um de seus melhores romances, diz que que não é a ocasião que faz o ladrão. A ocasião faz o furto; o ladrão já nasce feito. O mesmo raciocínio vale para a corrupção e o poder: o poder oferece a ocasião; o corrupto já nasce feito. No máximo, ao chegar ao poder, se descobre finalmente impune para corromper e ser corrompido sem preocupação.

Chamei seu altruísmo de sonso. Terei sido injusto? Ou será que de fato o poderoso, num delírio de suprema vaidade, crê estar mesmo apto a cumprir as promessas que faz?

Para responder seria preciso esmiuçar a psicologia do poderoso. Ou deveria ter dito “do corrupto”? Afinal, no Brasil, já mal os distinguimos. Tenho mesmo a impressão que se o poderoso não roubar corre o risco de nem ser reeleito. Exemplos não faltam.

Não me ocorre nenhum livro que trate do tema, a psicologia do poderoso corrupto. Talvez porque em nenhum outro lugar o poder tenha roubado tanto. Atingimos no Brasil um patamar de corrupção inédito e originalíssimo; o repertório de meios e a galeria de tipos que podemos oferecer à pesquisa médica certamente nos garantirá um lugar privilegiado entre as nações.

Antecipação de maio

“O tormento do corpo é a dor. O tormento da alma é o tempo.”

As palavras me ocorrem enquanto medito. Imóvel na manhã silenciosa, sinto que a dor no corpo vai e vem no ritmo da minha ansiedade: “Quanto tempo ainda falta?” é o sentimento que a desperta. Quando aplaco a vontade de partir, a dor cessa de imediato.
Mas logo paradoxalmente a súbita paz torna-se às vezes insuportável. E então a ansiedade e a dor retornam: sou de novo eu, com meus horários e tarefas, irrisórios e inadiáveis.

“O tormento do corpo é a dor. O tormento da alma é o tempo.”

Guardo as palavras. São versos que, de tão verdadeiros, me acalmam. Tão verdadeiros e belos como uma equação para o matemático. Saboreio seu ritmo e sonoridade ao mesmo tempo em que experimento diretamente a verdade que traduzem, perfeita síntese tão fácil de lembrar.

Queria fazer deles um poema – eles bem mereciam – e talvez venha a tentá-lo um dia. Mas não quero arriscar que por vaidade acabem esquecidos, não-compartilhados com os outros. Melhor soltá-los no ar, como passarinhos. Certamente irão alegrar a manhã de alguém, tão sonoros são, tão luminosos.

E que um poeta melhor os tome para si e faça deles a semente de onde nascerá o poema tão desejado. Não serão menos meus por isso.

Agora os versos já cumpriram a função mais necessária de me inundar de uma calma cheia de alegria. Não mais me esconder atrás da dor tem sido minha meta principal, ainda que talvez venha com certo atraso. “E daí?”, me previno contra mais essa forma que a angústia do tempo aprendeu a tomar.

Paciência tem sido o meu remédio. Seu princípio ativo se resume na palavra “sim”. E ainda que às vezes o remédio pareça me faltar, ao menos vou descobrindo que posso fazê-lo eu mesmo em casa, fechando os olhos e respirando com mais atenção e vagar, atento ao corpo, meu presente, o único que tenho e me dou.

“O tormento do corpo é a dor. O tormento da alma é o tempo.”

Ter pensado essas palavras, poder prová-las e sabê-las em toda sua delícia, e agora doá-las, salvou meu dia. Faço sol, muito sol, e uma brisa leve: em mim hoje, só por hoje, já é maio.

Ubuntu


Ubuntu é uma palavra africana que significa “Humanidade para todos” ou “Eu sou o que sou graças ao que todos nós somos“. (Ubuntu is an African word meaning ‘Humanity to others’, or ‘I am what I am because of who we all are’.)

Ubuntu é também a melhor e mais bonita distribuição Linux que eu conheço. clique

Para quem não tem o menor interesse em migrar para o Linux, a visita ao site da Fundação Ubuntu pode ser um perigo. Depois de ler sobre o projeto e ver a beleza do programa, a tentação de instalar é imediata.

Uma vez instalado o Ubuntu, a paixão é irremediável. As vantagens são muitas, além da beleza e funcionalidade. O sistema é gratuito, estável, facílimo de usar. A sensação de deixar de ser pirata é ótima! Melhor ainda é se sentir participando de um projeto belíssimo de inclusão digital.

“Uma tentativa de definição mais longa foi feita pelo Arcebispo Desmond Tutu:
Uma pessoa com ubuntu está aberta e disponível aos outros, não-preocupada em julgar os outros como bons ou maus, e tem consciência de que faz parte de algo maior e que é tão diminuída quanto seus semelhantes que são diminuídos ou humilhados, torturados ou oprimidos.”
clique para ler mais

A citação foi tirada do livro No Future Without Forgiveness, do arcebispo Desmond Tutu.

Há também um outro livro que parece bem interessante: Reconciliation: The Ubuntu Theology of Desmond Tutu, de Michael Battle.

É quase uma ironia que o autor de chame Battle, mas não é nada engraçado que no Brasil, um país ainda atormentado pela chaga da escravidão, nenhuma editora tenha se interessado em traduzir os livros.

Aliás, para finalizar, reproduzo uma frase que li no blog do Alon outro dia:

A escravidão está na raiz da nossa desigualdade crônica, da nossa incapacidade de enxergar valor positivo na cultura do trabalho e da prosperidade, da nossa tendência ao desperdício, da nossa tolerância à brutalidade.”

Um lugar aonde ir

Durante toda a vida, sua beleza fora um fardo.

Um fardo que se tornara mais e mais pesado por sua recusa em usá-la como vantagem. Até tentara. Mas a sedução desde cedo lhe pareceu um recurso de comerciantes, uma inaceitável concessão à mentira, uma espécie de hipocrisia que indicava uma carência que nunca lhe pesara. Não a esse ponto. Agora, mais uma vez, essa recusa fora tomada como afronta, porque interrompia a roda milenar de poder e sofrimento que parecia dar densidade à vida.

O desejo que sua beleza provocava nunca lhe trouxera nada de bom. Podia sentir na boca a amargura que essas palavras lhe produziam. Não precisava se ver no espelho para saber que seus olhos imensos se apagavam só de pensá-las, mas ninguém os veria atrás dos óculos escuros. Eram sua discreta couraça cotidiana. Por isso não se importava de ter pago tão caro por eles: não os perderia nunca, tão necessários haviam se tornado.

A boca amarga e os olhos apagados não lhe diminuíam a vontade de viver que nunca lhe faltara. Eram dados que aceitava como aceitava o sol forte numa rua sem o refúgio de árvores e marquises. Tinha de continuar simplesmente. Havia alunos à espera e era preciso se apressar. Agarrava-se aos fatos com mais vigor e seguia em frente. Fé era a palavra.

Aprendera que quanto maior a dor, menor o vestígio que dela ficava na memória. Claro, ninguém esquece o fato de ter sentido dor, mas da dor propriamente não restava nunca registro – ao contrário do prazer que, se muito intenso, bastava depois apenas entregar-se à escuridão dos olhos fechados para lembrá-lo.

Era então, pensava, como se a dor não fizesse sentido. Como se a dor fosse a encarnação do absurdo. E, ainda que o absurdo espreitasse a existência, era precário como toda ilusão. Se não resistisse, se não julgasse, a dor passaria e dela não ficaria nenhum traço. No entanto, se perguntava, por que escolhiam a dor? “Antes a dor do que nada”, ouviu-se pensar com uma voz que não era a sua. Antes o absurdo que nenhum sentido.

Não queria que fosse assim. Acreditava no amor e nos prazeres que dele decorriam. Já amara – perdidamente, mansamente – como todo mundo. E do amor, do amor carnal que une homens e mulheres, desse afinal não tinha queixas. Aprendera a nutrir-se dele e a refugiar-se nele – para criar sentidos? Talvez. Gostou da imagem: o amor era sua oficina. Ou biblioteca.

Agradeceu ter um amor aonde ir e seguiu ao encontro de seus alunos.

O perigo de estar certo

No alto, a lua lentamente é engolida pelas sombras e, de branca, púrpura se faz: lua que de mansa torna-se sangrenta.

Também em mim convivem, não sem desalentado espanto, a compaixão e a crueldade. Ainda há pouco, quando a música alta parecia deslizar no ar parado de tão quente, quis matar quem invadia assim tão sem cerimônia a minha calma. Foi um ímpeto, uma sombra. E o calor ou essa lua marcial não serviriam de pretexto: a História e as cadeias estão cheias de assassinos que começaram assim, amparados pela certeza de que agiam com justiça. Depois, nem mais de motivo precisaram para continuar matando.

A lua é afinal mais previsível. Sei dos seus eclipses, das suas fases e efeitos. De mim, sei apenas do meu esforço para conter a fera cuja violência não é menos cruel só porque deixou de ser mortal.

Não basta não matar; é preciso não desejar matar. E só não desejar matar também já não é suficiente; é preciso renunciar a toda forma de arrogância e crueldade. Não por covardia ou complacência; não por algum cálculo jurídico ou moral. Mas para abrir caminho à generosidade e à compaixão.

É difícil, dificílimo. E o maior de todos os perigos é, num confronto, se saber certo, genuinamente certo. “Protegei-me, Senhor, do perigo de estar certo”, é o que toda noite peço a Deus – porque a errar eu já aprendi faz algum tempo (o que não é pouco!). Aprendi que o erro às vezes até nos humaniza. Mas a certeza pode desumanizar aquele que a possui.

A lua, que há pouco parecia outra, de novo resplandece imensa. Eles continuam festejando, barulhentos. Nem sequer viram o eclipse.

Também em mim convivem, não sem desalentado espanto, a compaixão e a crueldade. Ainda há pouco, quando a música alta parecia deslizar no ar parado de tão quente, quis matar quem invadia assim tão sem cerimônia a minha calma. Foi um ímpeto, uma sombra. E o calor ou essa lua marcial não serviriam de pretexto: a História e as cadeias estão cheias de assassinos que começaram assim, amparados pela certeza de que agiam com justiça. Depois, nem mais de motivo precisaram para continuar matando.