17 de abril de 2000
Insônia

Mendigos passam, na madrugada, aos berros, bêbados e imundos, arrastando seus carrinhos de rolimã carregados de tralhas e papéis.
Minha intolerância encontra o que julga um motivo digno.
Se empertiga toda e se apronta para discursar em defesa da moralidade pública, o dedo em riste, a boca arreganhada espargindo perdigotos como se fossem água benta.

Chego à janela. São crianças, quase todos - à exceção de um ou dois adultos. São crianças que passam abraçadas, em algazarra, como se viessem do futebol à caminho de casa. Só que estas não têm casa.

E é a alegria delas que fere minha intolerância. Ela os queria tristes, cabisbaixos, conscientes de sua condição e ansiosos por minha pena. Viessem assim e minha intolerância era capaz de lhes atirar moedas pela janela, talvez aos prantos por lhes oferecer um pouco de sua felicidade contabilizada em pedaços de cobre reluzente.

Sua alegria a fere, no entanto. Essa alegria louca, indiferente ao que, a meus olhos, parece mais karma do que destino: que mal terá feito uma alma em outra vida para merecer reencarnar pobre no Brasil?

Minha intolerância, desta vez, não conseguiu tomar posse de mim.
Obrigado, crianças. Que as estrelas vos guie a um repouso seguro e a noite vos devolva em sonhos o que a intolerância vos tem negado.

***

Não conheço ninguém que não seja melhor dormindo.

Basta dizer que sonhamos, quando dormimos. Nem mesmo acordados, nossos sentimentos e sensações costumam ser mais intensos - e, portanto, mais autênticos - do que nos sonhos. Raramente na vida provamos do medo ou do prazer que certos sonhos nos propiciam.

Mais magnífico ainda é saber que tudo aquilo é uma produção mental que afeta um corpo que, na verdade, dorme - mas vive, em instantes (dizem os pesquisadores) toda aquela história que é o sonho.

Tudo aquilo existe no meu corpo, para o meu corpo. No entanto, fala-me tão exatamente do mundo e de mim que, primeiro, ao sonhá-lo, creio que é de verdade, vivo, aqui e agora. Depois, quando descubro que era sonho, ainda assim, busco um significado, um fiapo de um sentido que traga mais luz sobre minha própria história.

De fato, não conheço ninguém que não seja melhor dormindo. Até mais bonitos ficamos: é comovente ver alguém dormindo - desde que não ronque. Dormindo, somos divinos. Acordados, seguimos monotonamente fiéis um roteiro, tão alheio e previsível; tão mesquinho, às vezes.

Dormiríamos e as cidades ficariam assim, vazias. Não há cidade que não fique melhor quieta, vazia. Não só os homens ficam melhores dormindo, como as cidades também se tornam melhores porque dormimos. Na verdade, esse o luxo da insônia: ter o melhor das pessoas e das cidades.