25 de setembro de 2000
Debret Contemporâneo

Adoro esse nome: "Debret Contemporâneo". É uma das obras de arte mais lindas que eu já vi. E foi uma amigo meu que fez. Isso me orgulha muito e me enche de fé - na vida e na arte, na humanidade e em mim.
Trata-se de uma coleção de 12 gravuras em talho doce que reproduzem os 360 graus de paisagem do Corcovado. O autor se chama João Bosco Renaud - que de tão competente em seu ofício virou até nome de papel.

Bosco é talvez o único sujeito no mundo que domina não só a técnica do talho doce como também a da filigrana. São duas artes dificílimas e tão sofisticadas que ainda hoje são usadas para fazer papéis de segurança e dinheiro que tem valor.

É fácil ver o que é: pegue uma nota - nova, de preferência. Repare que todas as figuras são construídas exclusivamente por conjuntos de linhas paralelas que, mais ou menos densas, vão criando uma idéia de perspectiva e tridimensionalidade.
Atente que não há um traço definidor da figura, mas sempre apenas linhas. "Quanto mais linhas, mais escuro; quanto menos linhas, mais claro." Essa é a lógica. O preto é uma concentração infinitesimal de linhas. O branco a ausência delas. Legal, não? Pura abstração, deliberada e evidente ilusão.  Essas linhas são gravadas em lâminas de metal especialmente preparadas com uma espécie de bisturi chamado buril, trabalho que exige a paciência de uma alma de mil anos.

Se há pouquíssimos gravadores em talho doce no mundo, ainda há menos filigranistas. Uns vinte, no máximo. Pegue a mesma nota e a erga contra a luz: a filigrana é aquela figurinha translúcida que aparece em um canto da nota. Mal damos atenção a ela, oculta que está em sua transparência de fantasma. Produzi-la, no entanto, é arte nobilíssima. Todo o processo de produção desse avô do holograma envolve mais de uma dezena de etapas, mas tudo começa com a figura sendo esculpida num pedaço de cera - do tamanho exato da figura! - e em baixo relevo! Mais ou menos como se em vez do rosto você cavasse a máscara desse rosto...

"Debret Contemporâneo", como eu disse, é em talho doce. Mas burilado com detalhes de filigranista. Emociona ver - ainda mais se você é carioca e de vez em quando se sujeita a pagar para subir ao Cristo.

Só que as doze lâminas de metal, matrizes de toda obra, foram perdidas pela fabrica de matrizes para quem Bosco trabalhava quando ela mudou de dono... Repito: uma fábrica de matrizes de segurança perdeu as matrizes de uma obra de arte...

Algo simplesmente inacreditável - e melancólico. Filigranas de outra ordem livraram a cara deles na justiça - essa, com minúsculas, que diariamente nos oprime. Águas passadas. Para a obra, ainda resta a esperança do mecenato de algum empresário que não se mova apenas pela vaidade ou pelo lucro - o que nem sempre é uma contradição. Se há tanta gente disposta a pagar caro pelos "estudos sobre a linha" de alguns farsantes, haverá quem queira arte genuína.