Resolvo virar a noite para ver as meninas do vôlei. Não acompanhei esta Olimpíada tão fora de hora. A velocidade da virada digital fez da idéia de concentrar toda a competição em uma única cidade um anacronismo. O argumento de preservar a confraternização dos povos que caracteriza o espírito olímpico se resolve, na era da globalização, via satélite: com um número cada vez maior de atletas e modalidades em disputa, seria "natural' distribuir as competições por diversos países, unidos em uma grande ágora esportiva pela transmissão ao vivo. Seria mais econômico, emocionante e educativo e, ao mesmo tempo, produziria em todos nós, terráqueos, uma idéia muito mais forte de unidade acima de todas as diferenças, uma idéia muito mais viva e "real" de humanidade.
Essa idéia de humanidade que vem sendo construída tão duramente há quantos séculos? Vinte, só de era cristã - quando, lá pelos desertos do que no Império Romano correspondia ao Piauí, o filho de um carpiteiro começou a pregar que somos todos filhos de Deus. De Jesus às conclusões da genética - que demonstra empiricamente o que até então era controversa questão metafísica: que somos irmãos e , portanto, cada homem é todos os homens e traz em si a humanidade inteira - De Jesus às conclusões da genética, eu dizia, há um longo percurso que nenhum nazismo ou tirania de qualquer espécie pôde destruir: somos todos irmãos.
É nesse estado que me encontra o começo do jogo. Pouca importa que, quando esta crônica estiver sendo lida, já estejamos quase esquecidos do resultado. Pouco importa para nós, aliás, a contigência dos resultados: nada abalará a memória destas imagens gravadas a fogo nas retinas do torcedor insone.
Leila colibri se equilibra no tempo, suspensa no ar, impossivelmente quântica, enquanto lá fora o mundo transcorre no ritmo mortal dos segundos que escoam incessantes. É então que o lírico colibri se transfigura de súbito em anjo vingador e fulmina com um raio a arrogante esperança cubana de uma tranquila e previsível continuidade. Ponto do Brasil!
E quando aterrisa de volta ao solo, Leila está de novo tomada da humana ferocidade que a anima: ela grita, bufa, xinga - ela quer vencer. Desesperadamente, Leila quer vencer. Por instinto, o animal que é Leila sabe que tanto faz - vitória e derrota serão consumidas no fogo do esquecimento e de uma e outra não restarão mais do que estatísticas, frios números e palavras que irão constituir essa ilusão chamada história..
Por isso, Leila fera quer vencer. Por que é inútil e efêmera a vitória ou a derrota. Só por isso é preciso vencer - por um capricho da vontade contra a revoltante finitude do mundo - é preciso vencer. É preciso dizer sim ante a preguiçosa e tentadora facilidade do não. Para ela, é cada ponto que conta, não a irrisória soma que resultará na vitória de um. É essa vontade indizível de vencer que suspende Leila acima dos homens, na direção do Olimpo. É essa obstinada vontade que nos lava a alma, nós torcedores cúmplices, que somamos lágrimas indesejadas ao teu suor numa espécie de eucaristia pagã que nos redime e - genuina e inesperadamente - aproxima de Deus - Leila sacerdotiza de um logos inacessível às palavras.
Leila - anjo, colibri, sacerdotiza. Leila - símbolo de uma equipe valorosa e de um país que luta para se tornar uma nação. Leila - Leila, obrigado.