26 de dezembro de 2000
Verão

Depois de uns quatro dias de chuva e céu nublado, o sol dá as caras de novo, exatamente no dia em que o verão se inaugura. O sol é um personagem carioca. Li outro dia numa sala de espera que a exposição ao sol nos torna mais sensuais, conclusão de um acadêmico americano famoso que o carioca tem por verdade inata - ao mesmo tempo, instintiva e empírica: sabemos na pele o valor do sol...

O Rio é solar. Calculo que uns dois terços dos dias aqui são de sol. Isso dá uns 240 dias ou oito meses. Não conheço Londres, mas já ouvi dizer que lá é às avessas... Claro, a gente se acostuma a tudo, há ser humano em toda parte do planeta, do Saara ao Pólo Norte, mas é duro para um carioca imaginar uma cidade assim...

E iria por aí a crônica se eu não lembrasse de você, Sofia - lembrasse que faz hoje 11 anos que eu te levei pela primeira vez à praia. Ipanema, Posto 9, umas cinco e tanto da tarde. A praia já quase vazia, quase que só nós na areia. Só fomos nos dar conta que era o primeiro dia do verão e que toda a nossa insistência em "dar ao um pulinho na praia" obedecia a cósmicos desígnios secretos quando apareceu a dupla de repórter e fotógrafo do JB pedindo para fazer da gente matéria.

Tenho a foto agora, diante de mim. Preto e branco, em contraluz, o mar quebrando em branquíssima onda de luz estourada de fundo ressalta a nossa silhueta, Deise que me assiste erguer lá no alto você, que ciente da cena se espicha toda, apontando os olhos no céu, rindo com a chupeta presa do teu jeito, mordida no canto da boca... (Como é que você chamava sua chupeta? Se alguém há de lembrar é tua avó...)

Lembro que eu delirava com a idéia de que a tua primeira ida à praia seria manchete de jornal. E confesso que no outro dia achei que deram pouco destaque à matéria. Afinal, uma coincidência dessas é um mistério e tanto! A gente nem era pra ir à praia - o dia não estava lá essas coisas, a gente passara a tarde comprando presentes, mas sempre por ali, Copacabana, Ipanema, a três quadras do mar - e os repórteres procurando a foto que ilustrasse a matéria tão batida, que ritualmente se repete quatro vezes todo ano: o primeiro dia de cada estação. E aí nós vamos à praia quase que só para que eles nos encontrem. O primeiro dia de Sofia no mar. Primeira página.

Também gosto de imaginar anjos sussurrando no ouvido dos repórteres: "Andem, está na hora! Pela primeira vez, uma princesa vai ao encontro do mar. É preciso que haja disso o registro. Corram!". E como se fossem esbaforridos três reis magos - pois agora lembro que junto com eles vinha também o motorista (essa figura tão esquecida, o d'artangnan de toda equipe jornalística...) - despontando esbaforidos na areia - e às vésperas do Natal favorecem a metáfora.

Gosto das duas versões.
Insisto que o acaso é a caligrafia de Deus no mundo. É engraçado que, quando pensamos Deus, ainda O pensamos como Necessidade, mas é no Acaso, na Contingência que sentimos encontrá-Lo.
Mas também me agrada construir essas mitologias íntimas, onde nos contamos nossa história com grandeza: anjos vieram sussurrar ao ouvido deles...
Por acaso, estou com um livro de Quintana ao alcance das mãos, sacado de uma das muitas pilhas de livros que pontuam esta casa. Título: A Preguiça como Método de Trabalho, e lembrei de um verso dele em Espelho Mágico - vou ler pra você:
Nunca faças escândalos.
Ao menos, visto que tanto ousas,
não os faça pequenos...
O ridículo está é nas pequenas cousas".

Outra, que certamente até ilustra melhor a idéia de se contar a própria vida com grandeza, a idéia de que em tudo há de encontrar beleza o olhar de atenção sem culpa nem desejo:
Por que prender a vida em conceitos e normas?
O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer...
Tudo, afinal, são formas
E não degraus do Ser!"

Chama Da Perfeição da Vida esse... A mim, ensina o perdão, o olhar sem juízo de quem procura o novo sempre. Junte com o outro que te recomenda a ousadia mais do que o escândalo e já posso encerrar por aqui esta crônica que ficará assim soando sábia e solene, como se eu fosse um pai conversando com a filha no primeiro dia do verão do Rio, te mostrando o mar e os riscos da beleza...

***

E por falar em conselho: que triste figura tem feito Maradona... Por finíssima ironia, segue o mesmo caminho de Garrincha - a quem ele, de fato, bem pode ser igualado - os dois gênios.

A única figura que no esporte pode rivalizar com Pelé é Michel Jordan. A elegância, a beleza plástica de todos os gestos, a leveza que os fazia subir e parar no ar feito colibris quando a gravidade insistia em tragar os adversários, a cor, o brilho, o tônus muscular, a evidência dos números... Pelé não tem em Michel Jordan um rival, mas um gêmeo, anjos da mesma estirpe, eles - os incomparáveis.