1 de outubro de 2001
Anticrônica

Semana passada, não escrevi uma crônica. Escrevi um amontoado delas. Eram crônicas que mal começavam e já iam sendo atropeladas pelos fatos. Mortas, assassinadas, esquartejadas pela violência dos fatos, das informações e contrainformações. Dos fatos reais, dos fatos possíveis e dos fatos remotos.

Eram cabeças de crônicas, braços, pernas, que sangravam ainda vivos, aos pedaços. Talvez, aleatoriamente empilhados, tenham acabado por parecer uma crônica. Algo louca, contraditória, talvez, ou possuída de alguma lógica sutil. Mas uma crônica. Não era uma crônica. Eram várias. Cada parágrafo uma crônica nascida morta.

Como o rato, que na escuridão dos escombros fareja uma saída indo de um lado para outro no exíguo espaço que lhe resta, eu tentava a minha saída: escrever uma crônica.Mas o animal astucioso que escrevia, premido pelo tempo e fustigado pelos fatos, intimamente queria mais que uma saída: queria uma solução.

Não uma solução qualquer, mas a solução definitiva: a crônica que enfeixaria todos os acontecimentos em uma conclusão surpreendente e irretocável. E escarafunchava o teclado deste micro, onde até o som mecânico das teclas é falso, como o rato cava a escuridão nos escombros. Mas o animal astucioso era um homem e não um rato: não podia perder suas frases, seus parágrafos inteiros, suas obstinadas tentativas de entender.

E fui empilhando pedaços de crônicas - cabeças, braços, pernas - até que a genuína perplexidade foi cedendo à costura plástica das normas, dos raciocínios e sonoridades e, enfim, tinhamos a crônica, aquele monstro inconcluso, fervilhante de idéias.

A verdade é que desisti de entender. É a Morte o que vem por aí. E só. Como sempre. Morte - é o que vejo e pressinto. Agora, quando escrevo, sem muito ânimo sequer para o sexo regular e mecânico, agora ainda estamos à espera: na escuridão, auscultamos os escombros no aguardo de sinais.

Surpreendemente, todos sabemos e não sabemos o que irá ocorrer nos próximos dias que antecederão a leitura desta crônica, desta nova crônica. Entre a hora que escrevo e a hora em que outros olhos humanos voltem a pousar sobre este texto, os poucos dias passados terão o peso de séculos.

Por isso, me dou conta agora, está também não é uma crônica. É uma anticrônica: não terá nem o vínculo evidente com o "fato do momento" nem será uma divagação leve que tenta escapar do tempo. Será uma anticrônica que conta da espera disso que agora, nesta segunda-feira, é já um fato. Que fato, não sei. Talvez, inclusive, nada ocorra e prossigamos, "cadáveres adiados que procriam" quase convencidos que é a vida que segue no fluxo dos dias nomeados e numerados, sete dias na semana, trinta dias no mês. Não é a vida. É a morte em contagem regressiva quase silenciosa de relógio pingando os segundos um a um, iguais e incessantes - mas com prazo para terminar: não é um relógio, é uma bomba. Não é a vida, é a morte.

Enfim, daqui, deste instante que será passado agora, o que pressinto é Morte. A vontade de matar e de morrer contaminando as almas para tornar insensíveis os corpos que irão matar e morrer. O som do avião nos céus, um grito mais alto na rua, os passos no corredor - tudo recende a morte iminente. A máquina da morte já se pôs em andamento e uma aura maligna se espraia, lenta e tóxica, por toda parte.

Tolice tentar dar-lhe um nome, uma nacionalidade: Osama bin Laden e George W. Bush são já uma só pessoa, unidos pelo propósito único que encontra eco em cada um que espera na escuridão dos escombros. Impacientes, ansiamos por um desfecho.

Terá você também sentido, nestes dias que antecedem o impensável, o que sinto agora? Na escuridão, insone, quieto - terá você também sentido o peso desta espera? Ou terá dormido tranqüilo e indiferente, seguindo por estes dias sem sobressaltos mais evidentes do que aqueles que a TV nos oferece nos horários já previamente prescritos?

A angústia destilada aqui não está em mim. Está no texto. Se o telefone tocar agora, por exemplo, atenderei com a mesma voz de sempre: serei eu a atender e não este que escreve. A angústia está no texto e vem do que em mim é fundo sem nome, imune ao tempo e à história - isto que em mim não sou eu, esta frágil ilusão. Entre o branco da tela e a escuridão do fundo a comunicação agora se dá sem intermediários - direta e sem sentimentalismos. E as letras despejadas na tela são como ratos correndo entre os escombros. Quisera saber escrever uma oração. Quisera sair antes do fim.