Três figuras anacrônicas: eu, parado no sinal às 10 e meia da noite de um domingo. Perfeito Fortuna, encostado num poste, lendo o jornal de domingo que saiu no sábado e foi feito na sexta. José de Alencar, em estátua, sentado na praça, ora direis, ouvindo estrelas. Anacrônicos, sim. Ninguém mais pára em sinal à noite. Ninguém mais lê encostado nos postes. Ninguém mais vira estátua.
Anacrônicos porque sozinhos: eu, Perfeito e José nem nos vemos, tão absortos estamos em nos esquecermos, eu na paisagem, Perfeito no jornal, José em sua estátua. Ora, direis, leitor, " como não os vês?". E eu retruco: "Se não me vêem que valor tem esse ver?". Se eu gritasse: "Oi, Perfeito!", aí sim. Mas não sou sem metafísica feito o Esteves de Tabacaria. Por isso escolho esse meu ver quase invisível e silencioso, olhar de quem ainda pára em sinal à noite. Ouvindo estrelas, ora direis? Talvez. Às vezes, me contenta o tic-tac lento do semáforo - essa palavra linda. Gosto de parar em sinal. Acho até a coisa mais linda dos passeios noturnos parar em sinais fechados e esperar abrir na rua vazia. Anacrônicos também porque à vontade: nenhum de nós tem medo. Nem o cronista, nem o clown, nem a estátua sentem o menor medo de estar onde estão.
Ouvimos estrelas. Ao que o leitor moderninho e crítico reclamará: "Perdeste o senso? Isto é Bilac e não Alencar!". E eu responderia: "E daí? Lembrei o verso, o que já é muito. Estou no sinal distraído: "O tempo parou ou foi o automóvel?".
Pois não tem nem vinte anos Perfeito fazia pousar o Circo Voador na Lapa, direto do Arpoador, e foi como se o sertão tivesse virado mar: o Circo resusscitou a Lapa e a recolocou no mapa com a graça de uma rima. Não tem vinte anos e agora, no lugar onde era o Circo antigo, a prefeitura promete há séculos uma praça que certamente não se chamará Perfeito Fortuna nem terá uma estátua de Perfeito de clown, armado de surdo e cartola. Não, certamente não haverá nem nome nem estátua.
Vês, então, leitor, onde eu queria chegar, quando
falávamos de Alencar a ouvir estrelas de Bilac? Vês,
como fácil esquecemos? Alencar ou Bilac, Olavo ou José:
ficamos com o verso e se pudermos até esquecemos a
procedência.
O mundo não é justo e anacrônicas viraram
as estátuas. Não há mais gente que as mereça. Ninguém
mais vive pra ser estátua ou mero busto numa praça.
Vive-se.
Falo do Circo, lembro do verão, e então anuncio: começou o verão. Começou neste domingo - pra você, leitor, não ontem, mas o domingo anterior. Explico porque quero ser bem preciso e porque percebê-lo foi para mim uma ínfima epifania. Nem sei se você lembra, mas o verão vinha lutando pra expulsar uma frente fria que fizera a primavera brincar de outono e deixara todo mundo resfriado... Vinha lutando e então se instalou, vencedor, exausto e triunfante, num dia cálido de segunda-feira. E depois, à noite, no céu brilhava uma lua quase cheia.
De agora em diante, o calor será crescente, até
o ápice em fevereiro - quando então começa
o veranico, de março a maio, praias vazias e magníficas.
Agora é só o verão se aquecendo pra entrar
dezembro retumbante.
Tempo de biscoito Globo e água de côco.
Mas há também quem diga que o Rio só
tem duas estações: verão e inferno.
O inferno é de dezembro a fevereiro, março.
Não é recomendável para almas sensíveis,
certamente. Porque até a alma sua. Quem o vê
agora, comecinho do novembro não diz o tirano que será
daqui a um mês. Os que viverem, verão.