6 de agosto de 2001
Arpa

Escrevi uma crônica sobre vexames, na semana passada, e, lá no fim, quando tudo parecia acabar bem, escrevi arpa. Vexame! O instrumento musical se escreve harpa, com agá. Constatado o desastre e corrigido onde ainda era possível, fiquei pensando o que seria uma arpa - sem agá... Seria a mãe do arpão? Ou, no extremo oposto, seria a arpa uma espécie de carpa e, portanto, um peixe? Enfim, uma arpa o que seria? Fui conferir no Aurélio e constatei, para orgulho meu, que arpa sem agá não existe. Trata-se então de uma palavra nova. Mais descoberta do que invenção, porque a arpa já estava lá, oculta apenas pelo agá que lhe restringia a ação com o manto do uso.

Repare a importância do agá. É a muda e aparentemente decorativa presença dele que faz da harpa algo mais que arpa. O agá está para a harpa assim como o guarda-chuva está para o inglês ou o Marco Maciel para o governo. Pois, arpa sem agá não é nada.
Por outro lado, perceba o leitor a importância do erro, sua força criadora. Do nada e por nada, nomeamos o nada. Pois, quem diz arpa está dizendo nada. Por isso, não nos deixemos aprisonar pelas grades do sentido: quem disse que precisamos dele? Inventada a palavra arpa, ela não constará dos dicionários. Para todos os efeitos - gramáticos, dramáticos e pragmáticos - arpa segue sem sentido e inexistente. Porque precisamos de palavras sem sentido. Mas de palavras, ainda assim... E este é o nosso secreto ganho, caríssimo leitor, meu cúmplice agora: nós temos arpa.

Assim, quando a vida começar a nos parecer absurdamente lógica e injusta, quando a tentação do sentido nos alcançar em um momento de fraqueza, quando, enfim, a autopiedade nos oferecer o consolo do mau gosto, nós, com decisão que é puro gesto sem palavras, sacamos arpa. E se alguém ousar nos perguntar: "O que é isso?" , nós responderemos, irrevogáveis: "Isto não é nada". "Mas parece uma harpa...". "É, mas não tem agá...". E diremos isso não mais com a voz trêmula de quem foi surpreendido no erro, mas com a convicção dos que sabem que o nada é algo que precisamos trazer preso por uma palavra ao menos, feito uma dócil cadelinha, para que não se torne um monstro.

Ao contrário, quando alguém nos vier com esses papos de vendedor ou de político - eles agora fazem os mesmos cursos, por isso é quase impossível distinguir um operador de telemarketing de um governador - já poderemos dizer, sem dúvida ou ênfase: arpa. Nem é preciso esperar que venham. Eles estão aí todo o tempo, no telefone, no rádio, na Rede: arpa, arpa, arpa.
Eu estava vendo as estatísticas do comércio exterior, por exemplo. Arpa. As exportações brasileiras não crescem nem a pau, nem a prece. O mercado interno, no entanto, vive na falta - e a cada vez que a economia se aquece um pouco, logo aparece um economista para gritar: "Inflação de demanda!". Ora, mas se é assim, se não somos nem um país exportador, nem um país justo, voltado para si mesmo, o que somos, afinal? Arpa.

Arpa, sim - e não, nada. Pois algo ocorre aqui. Alguma riqueza é produzida por esta máquina chamada Brasil. Mas, se somos miseráveis e pouco exportamos, para onde vai, afinal, toda a grana da oitava ou nona economia do mundo? Não vendemos lá fora, estamos em falta aqui e mesmo assim somos um dos dez maiores do mundo.
Uma pergunta embaraçosa: como viem os outros nove?
É aí que mora a diferença. É aí que o nada vira arpa.É só comparar pra ver que aqui tem arpa. A nossa situação não tem nada a ver com capitalismo, globalização, o diabo a quatro. É a mesma máquina escravocrata que se adapta aos "novos tempos". Somos todos remadores de Bem-Hur literais nesta jangada de pedra (Uma citação dupla! Coisa de Natalício Manhoso...)

Isto aqui é uma gigantesca máquina de tirar dos pobres para dar para os ricos. Essa é a finalidade. Quem é que roda a máquina de empréstimos do BNDES? O FGTS. Só isso já é de matar. Quem financia os governos federal, estadual, municipal? Os impostos. Já reparou como eles são arrecadados? O FGTS eles pegam no guichê, você nem vê a cor do dinheiro. Arpa. Os impostos já vêm no preço, cobrados na fábrica. Arpa.
E pra onde vai esse dinheiro? Escola, polícia, saúde, estrada... Continue a lista você e quando achar um que funcione, me escreva. Porque a verdade é essa: não sabemos o que é o Brasil. E não adianta olhar no dicionário.