10 de dezembro de 2001
Os inescrupulosos

Acabei a crônica da semana passada falando dos inescrupulosos. Não sei se você lembra ou leu, mas falo em inescrupulosos no sentido que lhes dá o extinto crepusculismo, bem entendido. Segundo a psicologia crepuscular, há essencialmente dois caracteres: os matutinos e os vespertinos, segundo o costume de cada um de acompanhar a alvorada (crepúsculo matutino) ou o poente (crepúsculo vespertino). Há também os instáveis - que ora assistem a um, ora a outro, sem convicção ou regularidade - e os nebulosos, que nunca assistem aos crepúsculos, nem se importam com isso. No extremo oposto, há os bicrepusculares ou bicrepusculinos, fiéis aos dois crepúsculos e desdenhosos do que ocorre entre eles. Finalmente, há os noturnos - que simplesmente preferem a noite, mas têm uma queda natural pelas alvoradas.

Os inescrupulosos são, na verdade, nebulosos que se fazem passar por matutinos ou bicrepusculares, segundo sua conveniência. Enganam perfeitamente os vespertinos e os noturnos que, por razões diferentes, são amantes da arte, da ilusão e da farsa. Mesmo verdadeiros bicrepusculares chegam a confundir-se com os inescrupulosos.

Apenas os matutinos, por interesse ou desinteresse, e os nebulosos confessos, por inveja, não se deixam enganar pelos inescrupulosos. Os instáveis, como se sabe, apenas se opõem ou aderem sem muita paixão a qualquer coisa que transcorra entre dois crepúsculos.

Perceba-se que, na psicologia crepuscular e no crepusculismo em geral, o inescrupuloso não é apenas tolerado, mas também desejado e esperado. Por exemplo, é comum entre os que ainda secretamente professam o crepusculismo - comprovado já o disparate de que se trata - aguardar com muita excitação as campanhas eleitorais.

Tamanho alvoroço tem suas razões sintetizadas numa pergunta: "O que será que eles vão inventar desta vez?". É sabido que os inescrupulosos sempre inventam a mesma coisa: um candidato novo, novíssimo. Isso de fato não é problema: Natal, Ano Novo, Carnaval também são sempre a mesma coisa e ninguém se importa muito com isso. Gostamos - falo do homem em geral e não apenas dos adeptos do crepusculismo - da repetição. Ela acalma, conforta, ilude. Então quando os inescrupulosos aparecem com um novíssimo canditato a cada eleição, todos se postam atentos para as diferenças do novo modelo. Essa aliás, outra vantagem da repetição: ela realça as diferenças mínimas.

Desta vez, por exemplo é uma mulher o novíssimo candidato que os inescrupulosos tiraram da cartola. Segundo eles mesmo dizem, já sabiam que era isso que a gente queria! Uma mulher! É fantástico! A moça foi reeleita com 51% dos votos válidos de seu estado - digamos que isso represente 40% do eleitorado. Pois bem, os inescrupulosos dizem que hoje ela tem um índice de aprovação de 88%! Bush para chegar bem perto desse índice teve de encarar um 11 de setembro e uma guerra no Afeganistão.

Mais surpreendente, no entanto, foi sua performance nacional. Em pouco menos de dois meses, ela conquistou 20% do eleitorado do país! Impressionante! Fenomenal! Nunca fez absolutamente nada, carrega um sobrenome de péssima lembrança, governa o estado mais pobre do país e, de uma hora para outra, aparece com 20% do eleitorado.

É um milagre!

Obviamente, e os inescrupulosos apenas não o ressaltam por modéstia, não houve o concurso divino. Aliás, os inescrupulosos detestam concursos. Não, o milagre é obra humana e inescrupulosa. A fórmula é simples, como convém aos milagres. Eu mesmo não saberia expô-la, mas suponho que seja mais ou menos assim: um milionário e bem elaborado "plano de inserção na mídia". O produto é exposto na TV, no rádio, no jornal. Matérias, entrevistas, notas, anúncios, programas, boca-boca. Em seguida, aplica-se uma pesquisa do tipo "aferição de resposta". Claro, se a campanha foi boa, o índice será bom. Para finalizar, transforma-se essa "pesquisa de mercado" em "pesquisa de opinião" - e pronto! 20% do eleitorado (quando, no máximo, se poderia dizer que "20% dos entrevistados reconheceu positivamente o produto" ou algo assim...).

O mais emocionante é que já sabemos quais serão os próximos passos (é como nas novelas!): se agora ela tem 20% e está em segundo, quando a temporada de fato começar, ela já estará em primeiro e, portanto, imune aos debates do primeiro turno. Como sabemos que seu provável adversário sempre perde no final, podemos todos ficar ao mesmo tempo tranqüilos e excitados, surpresos e seguros. A história é a mesma. Só mudam os personagens e o enredo. Como nas novelas. Os inescrupulosos são mesmo uns artistas!