16 de julho de 2001
Carina e Antonio

Saiu ontem de cartaz A Máquina, peça de Adriana Falcão, dirigida por João Falcão. Espero que você, leitor, tenha tido a mesma sorte que eu tive de assisti-la, quase por acaso, a convite de uma amiga - e não posso deixar de pensar o quanto já não me terá custado esta minha preguiça, ou pior, esta minha má vontade que só com muito esforço consigo manter enjaulada. Quem viu certamente compreenderá meu entusiasmo e o desejo de falar dela. E os que não viram, que me perdoem está anticrônica, antimatéria jornalística que anuncia a perda em vez do fato e fala no presente do indicativo de algo que, em tese, já não existe.

Enfim, é com prazer que digo: o texto de A Máquina é um dos mais belos que já ouvi. Com genuína simplicidade, a peça mistura idéias complexas, fantasia e lirismo para criar uma fábula sobre a eternidade do amor e seus poderes. Mal comparando, lembra o mito de Orfeu, mas sem tragédia. E isto é uma qualidade nada desprezível: você sai do teatro feliz. Eu, por ezxemplo, saí rindo, os olhos quentes e os gestos largos, profundamente apaixonado por Carina e Antonio (ainda mais que, por motivos que prefiro manter entre parênteses, tudo no texto, e sobretudo os nomes, me soavam como um bom presságio sussurrado por um anjo, um anjo de asas pretas...). E, ressalte-se, não se trata de mais uma comédia. É um texto lírico que diverte, sim, pelo encantamento que sua riqueza poética produz.

Mas A Máquina é também a direção de João Falcão, que encontra soluções belíssimas para contar a história de amor de Antonio e Carina (adoro repetir esses nomes...). Na verdade, além da presença segura dos atores, no palco praticamente nada mais há: o cenário resume-se a uma engenhosa roda disfarçada no chão da arena que em alguns momentos é posta a girar pelos atores. No mais, toda a beleza se constrói de luz e escuridão, som e silêncio, imobilidade e gesto.
Porque João tomou a decisão sapientíssima - desculpem o abuso, mas tudo no espetáculo é superlativo - de escolher também a simplicidade. Percebeu o óbvio: que o texto se basta. Claro que o fato de João e Adriana serem um casal apaixonado seguramente contribuiu para que autora e diretor alcançassem tamanha sintonia.

Aliás, pensando bem, talvez o segredo de tudo esteja aí: é uma peça sobre dois apaixonados apaixonadamente criada por dois apaixonados. É isso! A gente percebe, sente, que cada palavra, cada gesto, a peça inteira, enfim, exala amor - não o amor maduro e cúmplice, mas o amor nascente, carregado de um vigor que é pura fé no melhor que cada um traz em si mesmo e capaz de levitar os amantes na direção do impossível - pois, nesse estado, como se contentar com menos? Carina e Antonio sou eu e você, menina. É João e Adriana, é Romeu e Julieta com final feliz, são todos os amores em flor.

Até esbocei exatas quatro linhas de críticas, resultado mais da atenção que devotei à peça do que propriamente por defeito dela. Mas como o primeiro resultado do amor - e também seu mais seguro indício inicial, quando se trata de um diagnóstico - é nos encantarmos com os defeitos de quem nos atrai, apaguei a crítica para ocupar as quatro linhas pretendidas com estas observações que, apesar do sentido vago e evasivo, enrolador mesmo, acabaram por ter um genuíno valor didático ao proporem um seguro método de detecção do amor em seus primórdios, como casualmente indiquei acima, além de me ocuparem bem mais espaço do que a crítica propriamente dita. Donde poderíamos concluir de modo falaz e, no entanto, feliz, que é sempre mais proveitoso falar bem ou ao menos não falar mal do que o contrário.

Enfim, leitor, se você assistiu a peça, como eu, sabe do que falo e compreende a minha falta de palavras para dar conta de dizer o que foi: só vendo. Mas, se não viu, agora já era, saiu de cartaz. Também, cá entre nós, quem não viu não foi por falta de aviso: a peça foi sucesso o ano todo. Mas é talvez a esses, os abatidos pela preguiça, pela teimosia, pela indiferença ou pela má vontade, talvez a esses é que me caberia chamar de fato de meus irmãos e tentar enchê-los da esperança de que ainda temos jeito se, como Antonio, acreditarmos no impossível, por puro amor ou vontade de amar - o que, aos olhos de Deus, dá no mesmo.