23 de julho de 2001
O brasileiro

Foi um passeio. Lavamos a alma na quarta-feira, Denílson nos devolvendo a alegria de ser brasileiro. Denílson desenhando com os pés geometrias de sonho que são como improvisos de jazz, solos que urdem o impensado e materializam o impossível: Denílson, ele mesmo diz, parte pra dentro deles - e os atravessa! Magicamente - ou melhor: quanticamente, como já devemos dizer neste século 21 - Denílson no instante seguinte já está do outro lado sem que sequer saibamos como passou: Denílson simplesmente passa espalhando perplexidade, um toureiro a bailar a irracionalidade das pernas que se estendem em desespero para detê-lo sem sucesso enquanto ele segue com o dominío mais da trajetória da bola do que dela própria: Denílson quase não toca nela, ele a induz, mais do que conduz.

Enfim, leitor, falo ainda desde esta madrugada de quinta-feira, depois de um jogo que teve a proporção épica dos momentos históricos. Os primeiros 30 minutos contra o Paraguai - e em especial os vinte seguintes ao gol adversário - foram o Fim com letra maiúscula: não havia mais futuro, a não ser uma trágica e fatídica reta que nos conduziria sem desvio à ausência do Brasil pela primeira vez de uma Copa do Mundo. Eu falo ainda desde esta quinta-feira, apenas algumas horas depois dos restantes 60 minutos em que o Brasil jogou o futebol sublime que é a nossa cara. Escrevo desde aquilo que neste momento me soa como um renascimento literalmente das cinzas: não era possível descer mais baixo do que àquele começo de partida e ao final estávamos no topo novamente. Eu falo, enfim, desde esta quinta de alma lavada, a despeito do que venha a acontecer hoje, quando espero, tanto quanto você, goleada e baile.

Denílson honrou a mística da camisa amarela. Como Juninho Pernambucano. Eu diria mesmo que a seleção na Copa América se guiará por dois pontos cardeais: o Juninho do Norte e o Juninho do Sul. Rivaldo que se cuide. E o mesmo vale pra Cafu: Beletti está jogando o fino. Outro que não sai: Juan. E tem mais: não sei como, mas tinha que ter Guilherme e Romário. Guilherme é um tremendo pivô. Lavamos a alma da lama de de tantos barbalhos, garotinhos, FHs, PMs, e outras siglas. O Brasil ganhou moral com a festa dos seus meninos. Festa junina. Agora é certo que o Paraguai virá para o jogo das eliminatórias com medo de levar outro couro.

Mas. se há Denílson, há também Felipão. A TV colombiana está de parabéns: soube mostrar bem como Felipão comandou a equipe no grito - com muita manha e precisão, até da trincheira em que tentaram confiná-lo. Desde João Saldanha o Brasil não tinha um técnico tão Neném Prancha: ele é o décimo-segundo jogador em campo, o comandante, o grande general Felipe. Se, como eu disse, no Brasil o futebol, tem proporções épica e qualidades míticas, Felipão faz juz à posição de técnico. Ele devolveu à seleção a nossa cara. Essa cara que sabemos que temos, mas mal sabemos descrever, indecisos que somos, incrédulos narcisos. Qual é a nossa cara, afinal? O que é isso: ser brasileiro?

Façamos aqui um corte brusco e ouçamos a voz de Ivanir dos Santos, 47 anos, pedagogo, presidente do Centro de Articulação das Populações Marginalizadas, Ceap.

"O que o Ceap pede às pessoas é simples: se você acha que há racismo no Brasil e que ele deve ser combatido, dê uma olhada no plantel de funcionários da loja onde você entrou. Se a ausência de negros chama a atenção, não compre ali. Se possível, diga a alguém que vai comprar onde haja negros trabalhando."

Recortei o trecho da crônica de domingo retrasado (15/7) de Elio Gaspari. Espero que ele não reclame. Ivanir também lembra um exemplo interessantíssimo do tipo de racismo que se exerce no Brasil: não há garçons negros no Rio. Pense aí, leitor... Assim de cara, não é mole apontar um caso e quem é de sair pouco não há de lembrar nenhum. Claro, deve ter, mas o fato mereceria até senão uma tese, uma dissertação.

É justo o boicote proposto por Ivanir. Justíssimo. Já está mesmo na hora de alguma cantora - alô, Sandra de Sá! - regravar o refrão: "Black is Beautiful". Porque o Brasil é black. É brown. É preto, mulato - na cor, na ginga, no riso - no drible, no toque. O Brasil é mulato, crioulo, mestiço: o Brasil é lindo por isso. Nesse Brasil mulato, imprevisto como um passo de Denílson, preciso como um passe dele, até japonesa tem bunda.

Mulato, sim. Crioulo. Misturado, misturadíssimo. Já é hora, no século que se anuncia quântico, de dizer que misturado é que bom, que o lance é ser mestiço. É hora já de abolir as germânicas fantasias de pureza e perceber que não há compaixão sem mistura. É hora de fazer que nem Carlinhos Brown que era chamado assim, de brown, para distingui-lo dos carlinhos brancos. Carlinhos fez do apelido sobrenome e entrou para a nobilíssima família de James Brown e outros gênios, que sabem, como todo gênio, que a única alquimia é a do Verbo.