25 de junho de 2001
Anjo de asas pretas

Não queria ser literário ao escrever para você, mas não resisto a me vestir das minhas melhores palavras: sussurro, suspiro, sonho - me enfeito de palavras de muitos esses, mas é de alabastro que me visto e só por dizê-lo minha língua já se alastra buscando a tua para nela esculpir serpentes e profetas. Perversa língua em sua sonsa mansidão no latifúndio desta boca, vazia dos teus líquidos, carente de teus ouvidos e que mal contenta-se com as frases tontas que fabrica para, ao falá-las, sentir-se falsamente lamber teus lóbulos, teus lábios todos, de alabastro inteira.

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"O coração amolecido como um figo na calda" (1):

fui procurar você em Adélia Prado... Não sei porquê, acho que é lá que você mora. Ou tem casa, ao menos. Fui e fiquei passeando sem pressa e acho que te vi de relance muitas vezes, mas fiquei com vergonha de te falar. É que desde menino eu tenho essa mania - esse prazer, digo melhor - de assistir quem eu gosto de longe e em segredo, como se eu fosse anjo.

"Antigamente, em maio, eu virava anjo" (2):

mas, eu sei, o anjo é você: "Eu sou um anjo de asas pretas que ninguém tem como hóspede sem um pouco de medo. Ou ainda, que no medo não se hospeda... ", você proclama no silêncio veemente de uma carta. Um anjo noturno de asas negras e carne de alabastro. Já eu me contento em ser só um segredo de olhos atentos que te arrepia a cada vez que é pensado - como um vento ou um presságio.

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E nem é bem que eu pense em você - eu sinto: você, meu anjo, com tuas asinhas pretas, é um aconchego de plumas. Ainda é muito cedo para ter medo. Vou tirar os sapatos para entrar...

***

De onde você veio?, Ela pergunta.
Onde você estava?, Ele responde.

O tom não é de lamento ou de espanto - é de encanto por se descobrirem subitamente únicos e inteiros: na escuridão não lhes aflige mais a falta. A que distância estão, se nem pisam o mesmo chão? Sim, mas "a minha voz ainda ressoa em teus labirintos e pesa em tua pele como se dedos fosse (e é! Pois se tomei posse dos teus...)", ele diz, ou poderiam dizer um ao outro os dois, quase trêmulos de júbilo. Mas não dizem. Nem nada perguntam. Sabem muito bem o quanto pesa este encontro: nenhum amor é deste mundo.

"A matéria de Deus é seu amor" (3)

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São um só e não se espantam disso. São um só e nem sequer desejam que isso dure. São um só e nisso repousa a secreta chave que os mantinha vivos separados. São um só e enquanto são assim nada há neles de profano ou de enfermo: os pães se multiplicam, os insones adormecem, os mortos tem saudades de seus corpos, as horas são indecisos caracóis em marcha.

***

"Respire lento em mim", você pede, suplicante. Por isso fiz este texto assim, bem espaçado, como uma casa cheia de janelas ou um céu com grandes nuvens dispersas, como o céu de Brasília. E ainda espalhei estrelas para que se faça noite à tua vontade.
Quis te construir um abrigo e a teus olhos parecer magnífico. Minha inocência não saberia pedir menos, meu desejo quer o teu melhor gozo.

O que existe são coisas, não palavras (4):

Por isso, vou te contar histórias pra te fazer dormir.

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(1) Chorinho Doce, A Sarça Ardente I, Poesia Reunida, Editora Siciliano
(2) Verossímil, A Sarça Ardente I, Poesia Reunida, Editora Siciliano
(3) Citação de Isaías, Por Causa do Amor, Poesia Reunida, Editora Siciliano
(4) O nascimento do poema, Licor de Romãs, Poesia Reunida, Editora Siciliano