16 de setembro de 2002
Tanta violência, tanta ternura

Não perca a exposição de Rosana Palazyan, no CCBB, Centro Cultural Banco do Brasil. Esqueça o rótulo "arte engajada" que se tentou pregar à obra. Não diz nada do que ela tem de singular e genial. É verdade, Rosana "trabalha" com menores infratores, jovens presos em condições subumanas por crimes quase sempre irrisórios. Foi desse convívio que nasceu a obra exposta, é verdade. E é só. Tudo mais é apavorante delicadeza.

Sabemos que a história dessas crianças é hiperviolenta. Morte, estupro, espancamento são cenas encravadas na memória delas. Ao bordar essas cenas em peças de puro linho branco e cetim, Rosana nos remete a uma infância ideal e fora do tempo, uma infância de bonecas de louça e contos de fadas. Subitamente, nós, os espectadores, que conhecemos essas cenas de ouvir contar ou de lê-las nos jornais, nós nos damos conta que essas cenas estão gravadas como trauma na alma dessas crianças.

Rosana subitamente faz ver que a violência não é só estatística e notícia mas trauma arraigado na infância de uma geração inteira. Ao ver aquelas cenas bordadas feito história em quadrinhos em batas e fronhas de linho, senti o que antes apenas sabia ou intuía: a profundidade da dor dessas crianças.

A dor de uma geração inteira de brasileiros ameaçadores e sem voz me chega à alma e se mistura às minhas lembranças mais íntimas e dolorosas e finalmente os reconheço como iguais e finalmente posso chorar não por eles, mas com eles. Chorar como criança pela inocência violada e perdida. Um choro carregado de revolta. Um choro impotente que é já uma promessa de vingança. Lá onde a arte confina com a magia, a obra de Rosana torna-se uma busca, a busca de redenção da inocência violada e perdida. Porque só a reparação do trauma poderá evitar a vingança.

Em outra parte da exposição, Rosana coloca pequenos travesseiros brancos suspensos no ar por finíssimos fios de nylon transparente, quase imperceptíveis. Logo percebemos que deles brotam figuras brancas em forma de gente, feito bonequinhos de brinquedo, desses que as crianças levam para dormir com elas na cama. Quando nos aproximamos, no entanto, percebemos aterrados que as figurinhas reproduzem cenas de extrema violência: a mãe que despeja água quente no filho, a polícia assassinando alguém a tiros, o pai que espanca a mãe. As figuras, que a luz de um refletor amplia em sombras apavorantes projetadas na parede, parecem brotar dos sonhos ou arraigar-se neles, feito pesadelos que se repetem com perversa precisão.

Em uma sala iluminada de luz negra, fios pendem no ar, presos a balões de gás aninhados no teto. Ao puxar os fios e trazer de volta os balões, lêem-se frases escritas neles, frases colhidas quase ao acaso entre as crianças, frases que são desejos, segredos, confissões: "Você não vai acreditar, mas aqui eu converso com as estrelas", "Eu queria voar", "Eu queria uma namorada igual a senhora"...

Noutra sala, estilizada de praia, ouve-se o mar batendo e pode-se vê-lo em vídeo por um buraco redondo do tamanho de um punho. Numa seqüência contínua, de que não se sabe exatamente o começo ou o fim, vêem-se pequenas cápsulas com nomes escritos atiradas ao mar como mensagens de náufragos. As cápsulas são feitas pelos internos com sobras de outros objetos, uma espécie de artesanato clandestino, arte secreta do precário.

"Tanta violência, mas tanta ternura" - é do verso de Mário Faustino que lembro quando penso no trabalho de Rosana. Seu engajamento não é social ou político, mas íntimo, psíquico, anímico. Ela quer, com a trama delicada de seus fios, reescrever destinos. Que Deus a abençoe e ajude.