25 de fevereiro de 2002
Charutos

Por que todo panaca a primeira coisa que faz quando lhe sobra um dinheirinho é comprar um charuto? Claro, os charutos nada têm a ver com isso. Talvez as tabacarias, sim. Mas os charutos jamais. Charuto sempre foi coisa de gente séria. Era uma ousadia que exigia um certo status, uma posição na vida que permitisse ao fumante atirar impunemente rolos de fumaça fétida no ar como quem distribui bençãos ou oráculos. Vou citando de cabeça: Getúlio, Villa-Lobos, Tom Jobim, Churchill, Guevara, Groucho Marx... Todo tipo de ladrão, do gangster ao banqueiro... Os pais-de-santo todos. Enfim, charuto não era pra qualquer um.

Hoje, o charuto tornou-se um acessório indispensável dos panacas. É fácil reconhecer um: fumam o charuto com a languidez de uma prostituta ainda virgem mas já em plena atividade oral. Fumam, não. Chupam. E com que gosto! É uma cena realmente ridícula e repugnante vê-los enebriados com o grosso charuto entre os lábios, mamando a fumaça com os olhinhos revirados por detrás das pálpebras.

Uma das consequências do neoliberalismo foi a multiplicação geométrica desse tipo de panaca. Multiplicação epidêmica cuja explicação ultrapassa os limites conceituais da Sociologia e da Psicologia e exigirá talvez a intervenção da Biologia para se alcançar uma justificativa razoável.

Terá o neoliberalismo produzido alguma misteriosa mutação genética que transformou panacas antes quase inocentes em perigosos fumantes de charuto? De onde virá essa estranha compulsão que os reúne em tabacarias decoradas como o que qualquer panaca imagina ser um "clube inglês", todos apertados em torno de pequenas mesas envoltas em fumaça, vestindo seus ternos supostamente moderninhos e ostentando gravatas que são o único retrato possível de sua alma?

As gravatas, aliás, apesar de inofensivas, mereceriam um estudo à parte. Se o charuto os une, tornando os panacas muito parecidos entre si, são as gravatas que os distinguem. Distinção sutilíssima e tácita, visto que o rígido código de conduta dos panacas não lhes permite o cultivo de diferenças evidentes.

Ao contrário, os panacas pensam e falam exatamente as mesmas coisas - dinheiro, carro, celular e mulher, nessa ordem - o que é uma forma de preservar a continuidade de suas longas conversas nos happy hours do Centro da cidade. É impressionante: um panaca senta, outro levanta-se e a estupidez da conversa não perde o fio, estendendo-se indefinidamente - a ponto de ser possível se deixar um panaca sozinho em uma mesa sem que ele sequer perceba. Poderiam se passar dias antes que ele se desse conta de sua solidão e, ainda assim, ela não lhe pesaria mais do que as cinzas de seu charuto. Até porque, ao mais leve traço de incômodo, o panaca pega o celular e liga imediatamente para outro panaca. Pronto!

Mas, eu dizia, se o charuto os une, é a gravata que os separa mais profundamente. O observador atento olha a gravata de um panaca e, guiado apenas pelas cores e estampas que ela exibe, é capaz de imediatamente distinguir um panaca sonhador de um panaca mais circunspecto, e afirmar, com mínima margem de erro, se o panaca, naquele momento de enebriante intoxicação fumosa, passeia sua alma pelas ruas de uma Londres ou de uma Nova Iorque imaginárias.

Porque, é preciso ressaltar esta característica fundamental: o neopanaca tem uma alma importada. Aliás, tudo nele, a começar pelo charuto, é importado, nem que seja do Paraguai: o que vale é a etiqueta. Se pudessem - e alguns realmente podem - ganhariam em dólares. Moram, obviamente - ou desejam ardentemente morar - em condomínios que atendem por nomes como Malibu Flat, Ocean Drive, Summer Cost, e não hesitariam em comprar apartamentos no Silly's Swamp Resort, dependendo apenas das condições de pagamento. Crêem - com intensidade religiosa - que a Barra é Miami e São Paulo, Nova Iorque e, assim que puderem, comprarão uma Cherokee - se já não tiverem uma. Aliás, esse é outro mistério que envolve os neopanacas amantes dos charutos: eles adoram utilitários rurais, ainda que raramente ultrapassem os limites da cidade.

Charuto, Cherokee e celular - eis uma síntese razoável, uma equação definidora do neopanaca contemporâneo. Redutora, claro, como toda a síntese - mas, convenhamos, os neopanacas não se caracterizam pela singularidade.