30 de setembro de 2002
Animais de estimação

Eu também gosto de cachorro, gato, papagaio. Adoro cavalo. Mas em casa, eu crio mesmo é formigas. Dessas formigas domésticas, pretas e miudinhas. Nada contra outros bichos, mas para quem vive em apartamento, é preguiçoso e se quer um nômade sempre pronto a partir, as formigas são o animal de estimação ideal. Não dão trabalho nenhum. Não é preciso alimentar, dar banho, levar para passear - nada. Na verdade, elas até colaboram na limpeza: por causa das formigas, minha casa não tem baratas. Ou, ao menos, eu imagino que seja assim. Somos, portanto, muito felizes em nossa convivência, eu e a as formigas.

De manhã, quando acordo, quase sempre dou de cara com elas trabalhando na cozinha. Como trabalham! São longas linhas fervilhantes que se movem pela pia, descem pelas paredes e se estendem pelo chão até sumir em algum buraquinho quase invisível.

De algum modo, elas sentem minha presença, mas continuam o vai-e-vem incessante. Se for preciso, dou uns tapas na pia e logo elas se dispersam num bater de pálpebras. é impressionante: a informação circula imediatamente por todas as filas. Há um ordenado corre-corre, as linhas se engrossam, mais velozes e, de repente, em questão de segundos, todas as formigas somem! Resta uma ou outra, zanzando de um lado para outro como um conferente se certificando que nada faltou ser embarcado - e só.

Sempre que posso, se não há tanta fome nem pressa, gosto de ficar quieto, observando o trabalho delas. Nunca li nada a respeito das formigas, nem idealizo a organização delas como modelo de nada. Pelo contrário, é triste pensar que os homens ainda funcionam assim, feito formigas. Mas é comovente ver uma formiguinha carregando um pedaço de alguma coisa que tem o dobro, o triplo do seu tamanho ou o trabalho de equipe delas, quando três, quatro se juntam para arrastar algo ainda mais pesado.

Talvez o que eu mais admire nelas seja a obstinação e o silêncio. Outra coisa que me impressiona é que elas parecem respeitar as comidas. Só atacam os restos. Jamais tocam senão no que é sabidamente lixo. A exceção, claro, é o açúcar que, se deixado aberto, será certamente invadido, atração irresistível. A coisa vira festa. Basta bobear com o pote aberto para logo em seguida encontrar a superfície branca do açúcar tomada de tracinhos pretos que se movem meio doidos, enquanto outros permanecem estacionados, sugando mais e mais açúcar no que eu presumo ser um porre monumental.

Como também tenho uma relativa simpatia pelos bêbados, adoto o mesmo sistema de espantá-las com o barulho: pego uma colher ou qualquer coisa assim e bato no vidro do pote de açúcar. A maioria rapidamente some, mas sempre ficam umas bêbadas mais insistentes, imunes já a toda prudência.

Não sei, obviamente, se as formigas dos outros também são assim, educadíssimas - além de disciplinadas, como é próprio da espécie. Infelizmente, não há criadores de formigas conhecidos com quem trocar impressões. Alguma entidade pública como um clube ou associação dos criadores de formigas, por exemplo. Pelo menos que eu saiba. Talvez até exista, mas é provável que eles sejam discretos como seus animais de estimação.

Agora mesmo, enquanto escrevo, estou vendo uma que veio se aventurar por estes lados da sala. Passeia pela mesa com apressado destemor, fuçando aqui e ali, esbarrando de objeto em objeto, com ares de tonta. Será alguma espécie de batedor que vem em busca de áreas onde haja mais alimento ou espaço para novos formigueiros ou será simplesmente uma aventureira que se lançou ao desconhecido apenas pelo prazer de ver onde vai dar o mundo? Sei lá...

É possível também que seja uma tola distraída que apenas se perdeu, enquanto flanava por aí, divagando mudamente sobre o significado de ser formiga neste mundo urbano de humanos continentais. Lá se vai ela, perder-se atrás da mesa para sempre - como toda essa gente lá embaixo que começa a sair para o trabalho, apressada e anônima, e de quem jamais saberei quem é ou o que pensa. Não importa, dedico a todos, homens e formigas, o mesmo carinho barato e cordial, que se não nutre, também não mata.