10 de fevereiro de 2003
Anti-romântico

O leitor há de me perdoar a inconfidência, mas a impressão que tenho é que as pessoas gostam de sofrer. O sucesso do romantismo assim se explica. A impossibilidade, a ausência, a perda e, claro, todos os excessos compensatórios nunca suficientes, são os elementos com que se constróem as histórias, reais e fictícias.

Enfim, de falta e frustração se faz o drama, seja uma tragédia de Shakespeare, seja a primeira página de qualquer jornal. A impressão que tenho é que o sofrimento cria nas pessoas uma ilusão de densidade, de concretude (e uma tensão que chega mesmo a doer no corpo). E diria mais, leitor, o sofrimento cria a ilusão de um sentido.

O sofrimento pode ser descrito. O prazer, não, já exige metáfora. O prazer é fugaz, instantâneo e intenso. Inapreensível diretamente em palavras (talvez em números?). O sofrimento é lenta trama que se estende. Tem duração, datas, nomes.

Eis a minha tese: para a maioria quase unânime, a vida sem o sofrimento seria insuportável de tão leve. "A Insustentável Leveza do Ser" - foi livro, foi filme, lembra? Pois é, é por aí... O leitor repare que vivemos num mundo onde não ter problemas chega ser vergonhoso. O sujeito que não confessa ao menos uma prestaçãozinha atrasada, uma dor nas costas, umas pelancas indesejadas - o que for - esse sujeito é quase odiado pelos outros. E não falo, repito, de problemas no sentido só do drama, daquilo que parece fatalidade, carma, praga, castigo, falta de sorte (para não usar aquela palavra...). Falo dos problemas que a gente arranja tipo "eu tenho um objetivo" ou, para ser mais claro, todas as formas indicativas e subjuntivas do verbo querer.

"Eu quero" - e aí começam todos os problemas. "Deixa a vida me levar...", canta Zeca Pagodinho com a precisão de quem já sabe como levar a vida. Mas o burro diz "eu quero" para a cenoura que carrega diante dos olhos. Problemas. Tire dele os problemas e sua vida estará arruinada.

Digo isso e nem sei se uso a primeira pessoa ou a terceira. Sou assim também, mas acho que nem o Zeca consegue manter essa leveza toda, 24 por 7... De qualquer maneira, vê-se que eu e ele tentamos driblar a sedução do sofrimento em suas variadas formas. E, se às vezes a gente esquenta, o segredo é esquecer depressa. Eu, do drama romântico, quero distância. Até como literatura. Ter uma visão lírica do mundo é outra coisa. Não é novela. É poema. Não é queixa, mas exaltação. Mais pra Paulinho do que pra Peninha... Mais pra Zeca.

"Deixa a vida me levar..." - você pode até não gostar da música, mas não dá pra desprezar a filosofia.