10 de março de 2003
Amor de carnaval

Uma das boas coisas da vida de solteiro é que você pode casar de vez em quando. O nome científico é interinidade matrimonial. Como vê o leitor, rima perfeitamente com carnaval. Feito um poema. Ou, se quiserem, uma fórmula. Aproveita-se o longo feriado e inventa-se um casamento feito para durar só a lua-de-mel. A geladeira está cheia, a estante abastecida de livros e vídeos, o coração repleto de desejo. É o que basta para vida transcorrer idílica entre a cozinha, o quarto e o chuveiro num vaivém ditado apenas pelos humores do corpo. Porque a alma satisfeita é só isso: corpo. Não quer estar em outro lugar que não seja agora. É toda corpo e não precisa das palavras.

Nada se perde da vida de solteiro: os pratos ficam sujos na mesa até serem lavados, o ar fica ligado, ninguém reclama das roupas espalhadas. Sobretudo pode-se andar molhado pela casa. E ainda se ganha a graça das calcinhas penduradas no box, cada dia uma, todas inéditas.

Claro, num clima desses há o risco do amor. Tudo bem, hoje começa o ano. E todo mundo sabe que quando começa o ano, acaba a vida. Pelo menos, a boa vida. O ano, aliás, não se anuncia nada bom. Mas vamos mudar de assunto. Você deve estar aqui fugindo do primeiro caderno e a gente vinha tão bem, falando do amor...

Do risco que é o amor para a vida de solteiro. Há que saber amar solteiramente, leitor! Aliás, arriscaria mesmo dizer, num puro improviso sem compromisso, que o amor genuíno é solteiríssimo. Ele ama, incondicionalmente, sem exigir continuidade.

Viver o instante reticente. Cada instante... Pingando... Um a um... Reticente... Porque esse papo de representar o tempo como uma reta é coisa de matemático que não entende nada de poesia. O tempo é reticente. Na vida e na poesia. "O tempo é discreto", diria Descartes, que foi matemático e poeta. Discreto quer dizer descontínuo, em filosofia. Engraçado, isso, não? Pois, quer alguém mais discreto que um reticente?

Enfim, leitor, sejamos discretos e reticentes. Chega de papo! Aos amores solteiríssimos do carnaval e de sempre! E proponho um lema, uma máxima, um brinde: "O tempo é discreto. Só há agora e nunca mais. O amor é a arte de fazer durar."