Contas. Contas. Contas. Todas atrasadas. Dinheiro. Tudo se resume nisto. "A Telemar tem um importante mensagem para o assinante desta linha". Desligo. Já sei qual é a mensagem. Tem uma porção de gente me dizendo a mesma coisa. Gente? Seres de outra espécie.
O problema é que ninguém perdoa pequenas dívidas. O Purgatório está cheio de pequenos devedores. Os grandes dialogam diretamente com o Diabo. Ou com Deus, quando Ele resolve anistiá-los. Os pequenos devedores não têm a quem recorrer. Vivem no limbo. Uma longa fila do lado direito de um corredor imenso. Do lado esquerdo, uma série de guichês. Os pequenos devedores vão passando de um para outro lentamente. Na fila, só se fala em dinheiro. Estamos pagando nossos pecados, dizem. Há as multas por atraso. Mas isso é depois, em outro corredor. E há os juros. Porque, para cada conta ou multa é preciso tomar um pequeno empréstimo e sobre cada pequeno empréstimo incidem pequenos juros. Serão pagos em um terceiro corredor, mais adiante. Não se preocupe, você tem todo o tempo do mundo, dizem.
Narro a via crucis da alma do pequeno devedor. Porque o corpo não pode parar de trabalhar. Mesmo sem dinheiro. Vá a pé, beba água da torneira, durma no emprego, coma o pão que o Diabo amassou. O Diabo, não. Os grandes devedores: o Diabo privatizou a padaria.
Logo se vê que o pequeno devedor é um ressentido, um sujeito de horizontes estreitos. Olha as mulheres nas capas de revistas e se pergunta quanto terá custado aquela dentadura tão branca e exata. Ou quanto terá ela cobrado por aquele sorriso. O pequeno devedor rancoroso só pensa em dinheiro. Não sente desejo. Sente raiva. Até seus dentes são provisórios.
Em seu caminho, cruza com ternos e gravatas. Seres de outra espécie. Grandes devedores anistiados. Compradores de revistas com mulheres sorridentes na capa. Gostaria de matá-los. Mas não está armado - a não ser de sua amargura. E sua amargura é uma faca cravada em seu estômago. "Só dói quando eu penso", ele pensa. E dói.
Pensa? Só em dinheiro. Uma idéia fixa. Enquanto caminha vai imaginando roubos, assaltos, golpes, trambiques, heranças inesperadas, prêmios de loteria, golpes-do-baú. Qualquer coisa que o resgatasse da lama de repente (porque sabe que já não há esperança no trabalho). Calcula minuciosamente de cifras modestas para a salvação imediata a cifras milionárias para a redenção eterna, passando por cifras intermediárias que lhe permitiriam um simples recomeço. Cinco mil, dez mil, cem mil, um milhão...
Diverte-se ao se imaginar rasgando em pedacinhos os recibos de todas as dívidas quitadas ou curtindo um pôr do sol numa ilha grega. O rancor embutido nessas idéias alivia o rancor embutido na realidade. Simples aplicação do princípio homeopático de que o mal se cura com o próprio mal. Assim fazem os grandes devedores: multiplicam sua dívida até torná-la impagável. Mas o pequeno devedor não sabe fazê-lo. Sua amargura é uma forma de escrúpulo. "Otário", pensa, amarguradamente.