30 de junho de 2003
Fabulosa insignificância

Por mais de uma década fui um dos protagonistas de fenômeno certamente histórico e de alcance universal, digno de constar no "Livro dos recordes". Algo que jamais acontecera e que certamente jamais se repetirá. Nunca antes na história da humanidade três Antonio Caetano conviveram no espaço de meio quarteirão. E digo mais: sem sequer sabê-lo.

Não há no catálogo telefônico de assinantes mais de quarenta pessoas de sobrenome Caetano, e nenhum delas é Antonio. É o suficiente para o leitor avaliar a raridade do nome e, por consequência, a originalidade do fato. Aliás, essa espantosa originalidade é proporcional à sua absoluta insignificância.

É desse poderoso contraste que surge a beleza desta espécie de equação matemática: três Antonio Caetano - eu, meu pai e o dono da padaria da esquina - convivemos muito próximos, sem que nos déssemos conta disso.

Exagero. Eu e meu pai nos sabíamos muito bem. Tanto que lhe adotei o nome. É uma bela forma de se chamar: Antonio Caetano. Ou seja, gosto do meu nome.

Mas saber dia desses que também o dono da padaria era um dos nossos, sem ter jamais sabido que os outros dois, a quem dava bons-dias ou boas-tardes quase diários, eram não só pai e filho, mas Antonio Caetano também - isso me encantou.

Senti um aroma de ironia ao pensar que meu pai talvez ou certamente morreu na mesma ignorância do fato que tanto o divertiria em vida. Ironia machadeana: Machado e meu pai também foram padeiros e a mim até hoje emociona o cheiro primordial do pão.

Mas sempre senti que há qualquer coisa de comunicação entre as almas de corpos mortos ou vivos e meu pai terá rido comigo? Não importa. Este pensamento, limpou toda a melancolia que pudera ter havido ao lembrá-lo.

Fabulosa insignificância. Não mudou em nada os destinos do mundo, nada lhe acrescenta de concreto, mas diverte como a flor no vaso modesto do quarto e sala do Catete. Pois é, leitor, há coisas nesta vida que são flores: têm um brilho fugaz que nos diverte e ilumina.

Sinto saudades do meu pai. Nada que doa ou esteja marcado por culpas ou ressentimentos. É de fato a mesma saudade que dedico a alguns poucos vivos que vejo pouco ou perdi de vista. Sinto sua presença não exatamente como a de uma alma ou anjo (ainda que às vezes goste de pensá-lo assim), mas como um livro de máximas que me norteasse ação e pensamento em certos momentos. Pensando bem, que diferença há entre uma alma e um livro? Vinicius dizia que o uísque é o cachorro engarrafado. Pois o livro é a alma encadernada!

De fato, um livro é algo como uma eternidade interina ou provisória. Não é preciso recorrer aos exemplos mais óbvios dos livros sagrados. Aristóteles me basta. Dois mil e quinhentos anos mais ou menos já se passaram e ele ainda anda por aí, inesgotável. Não posso falar de Aristóteles como filosófo, mas do pouco que li, gostei de tudo. Deduzi que terá sido o primeiro grande esforço de sistematização (que palavra para uma crônica) do pensamento humano em regras e princípios claros para todos (só nesse sentido ele seria um iluminista).

Aristóteles, logo se percebe na leitura, é um unificador. Começa sintetizando o pensamento de toda filosofia anterior e morre escrevendo uma constituição de todas as constituições.

Lembro que meu interesse por filosofia começou ao ler a vida de Alexandre contada por Plutarco. É um livro imperdível. De todos os lugares que conquistava, Alexandre mandava para Aristóteles animais, plantas, pessoas, inventos, livros - enfim, um "museu" completo. Era o "projeto helênico" em andamento. Algo que de certa forma se completa no cristianismo. Eu resumiria assim o projeto: "a aceitação racional do absoluto que é Deus - incognicível mas que se expressa no mundo através de leis".

O leitor me desculpe ter ido longe demais no devaneio. Estávamos na padaria da esquina num encontro de homônimos e quase sem nos dar conta saltamos para a Grécia. Tudo para dizer que os livros são almas encadernadas, eternidades provisórias - do que Aristóteles é exemplo.

E ficamos por aqui, nesta aparente contradição: eternidade provisória. Para mostrar que as contradições existem. Inclusive as falsas. Marcam os limites do pensamento, ponto de partida dos aventureiros do abstrato.