Que livros eu levaria numa viagem longa, para uma ilha deserta? Ou, dito de outro modo, de que livros minha alma é feita? Já devo ter feito essa lista umas mil vezes e outro dia mesmo a Clarah escreveu uma crônica sobre os clássicos de cada um, aqueles livros que nos pegam pelo íntimo...
Vou passando os olhos pelas estantes... É preciso que sejam dez. Parece pouco, dez, mas não foram tantos os livros que me arrebataram para sempre, que resistiram a uma segunda leitura ou mereceram uma terceira. Muito poucos...
O primeiro que me ocorre é "Zorba, o grego". Quis ser Zorba, quis para mim seu despojamento e ousadia, ainda que me sentisse o próprio professor embriagado de metafísica que narra o livro. Ter encontrado Zorba salvou-nos, a mim e ao professor. Ninguém nunca mais é o mesmo depois de ler Zorba.
Outro: "A borboleta amarela". Se Zorba me ensinou quem ser, Rubem Braga me ensinou o gosto de escrever. Na ordem cronológica, a descoberta de Rubem precede a descoberta de Zorba. Li "A borboleta amarela" na escola, com 11 anos. Era um moleque, mas pela primeira vez me senti um homem. Meus amigos queriam ser Emerson Fittipaldi, Pelé, Roberto Carlos, Chico Buarque - eu queria ser Rubem Braga. E Zorba...
O livro seguinte, na ordem das emoções completas, foi Dom Casmurro. Li logo em seguida, "Memórias póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba". Argumentaria que se trata de uma trilogia e levaria os três como se fossem um só. Devo ter lido "Dom Casmurro" com uns 15, 16 anos... Fiquei besta, boquiaberto, em êxtase. Hoje eu diria que intuí que Machado escrevia os romances que Rubem Braga não escrevera. Ou, por outra, que era possível escrever romances narrados como crônicas. Até então eu só lera narrativas clássicas, de ação. Em Machado não havia ação - e mesmo assim ele te pegava e conduzia, pura sedução da palavra. Então já temos três livros... O quarto seria "Uma estação no inferno", de Rimbaud, na tradução de Ivo Barroso. É fundamental frisar "na tradução de Ivo Barroso" porque há outro Ivo tradutor, mas é ledo engano. Quando encontrei Rimbaud na cabeceira da cama de Diana eu já era Rimbaud sem o saber. Descobrir que eu já existia e escrevera aquele livro resgatou-me do desespero. Eu tinha 20 anos - e isso explica tudo.
Na mesma época, fui entrevistar Aldyr Blanc e ele me emprestou "Jogo de Amarelinha", de Julio Cortázar. Nunca devolvi o livro todo anotado por Aldyr, anotações preciosas, feitas numa letrinha miúda, de médico - Aldyr foi psiquiatra, até tornar-se compositor e escritor. Desculpe, Aldyr, o furto. Mas esse livro, ou melhor, esse exemplar que era só seu e que tenho até hoje, tornou-se um órgão vital do meu corpo: não teria sobrevivido sem ele. Uns dois anos depois, o falecido Pereira me deu de presente um exemplar comprado num sebo de "Trópico de Câncer", de Henry Miller. Pirei de novo. Se Cortázar foi meu "segundo Machado", Miller foi meu "segundo Zorba". Não parecia haver literatura ali, mas vida. Pura vida, em estado bruto: tesão. Ler Henry Miller dá tesão. Poderia ser vendido em farmácias.
De uma só vez, me ocorre agora uma enxurrada de livros, que vieram em seguida: "Lord Jim", de Conrad, traduzido por Mário Quintana, que eu tenho autografado pelo próprio. "Sob o vulcão", De Malcom Lowry. "Fim de caso", de Graham Greene. "As pipas", de Roman Gari. Todos lidos em tradução. São livros profundos, obscuros, lunares.
Só falta um. Eu sei qual é. Meu sol. O livro mais importante da minha vida. "Meditações metafísicas", de Descartes - na tradução de Bento Prado Junior.
Eu poderia falar horas sobre este livro, deveria escrever uma tese sobre ele, mas resumiria dizendo que tudo que se precisa saber sobre filosofia está lá. E é surpreendente como Descartes escreve bem. Não se trata de uma obra-prima da filosofia apenas, mas de uma obra-prima da literatura. Como filosofia, é suficiente saber que toda a filosofia moderna gira em torno desse livro, a começar por Espinosa e seguindo com Newton, Hegel, Kant, Freud, Bergson, o próprio Nietzsche - e todos os que deles derivam. Anti, pós, neo - agregue-se qualquer prefixo ao termo "cartesiano" e tem-se aí um escola de filosofia. Apesar disso, é talvez o livro menos lido e mais desprestigiado da filosofia. Por aí, já se avalia o grau de burrice a que chegamos.
Como nenhuma lista de dez está completa se não tiver onze, acrescento "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", de Clarice Lispector. Aliás, um infalível presente para mulheres.