Às vezes, venho a pé para a Tribuna. Sem pressa, e parando para conferir e comparar as manchetes dos jornais expostas nas bancas, são quarenta minutos de caminhada, mais ou menos. Minhas motivações para ir a pé são bem simples: tomar sol, ver pessoas e encontrar minúcias no caminho que ainda não tenha reparado. É incrível como uma paisagem tão familiar pode guardar tanta novidade. Claro, são detalhes ínfimos: um azulejo, a data ou algum detalhe decorativo no frontispício de um prédio antigo, uma samambaia bem cuidada que se derrama do parapeito de uma janela - coisas assim.
Lembro que quando estive em Nova York há três anos, quase todos os dias ia levar Sofia na escola bem cedo. Íamos os dois de metrô, ela no mau humor típico de adolescente que preferia ainda estar dormindo, eu atento às figuraças que viajavam conosco: brancos, negros, judeus, orientais, indianos - quatro continentes espremidos num vagão. A escola fica numa transversal da simpaticíssima Union Square, bem em frente à igreja de São Jorge, e depois de deixá-la, quase sempre eu descia a Broadway a pé, de volta para o Soho. Àquela hora, não muita havia gente nas ruas e eu ia reparando nos prédios, a arquitetura delirante do fim do século 19, começo do 20, pouco antes do funcionalismo obsessivo das modernas escolas de arquitetura transformarem os prédios em caixotes desprovidos de qualquer subjetividade.
A impressão que me ficou foi que os edifícios eram decorados segundo o estilo de quem os mandava construir, signo do triunfo do imigrante que chegara à Nova York sem dinheiro e, depois de muito trabalho, mandava erguer um prédio numa das avenidas mais caras do mundo como uma espécie de monumento a si mesmo e à sua gente. Nao entendo nada de arquitetura, mas minha ignorância me sugere que há de tudo ali, em termos de estilo: diferentes versões do barroco (italiano, espanhol, português), art déco, art nouveau, neogótico, neoclássico - o diabo...
Mas Broadway ou Catete, pouco importa: o que me encanta é deduzir da casa o retrato de quem a construiu. Que fantasias, ilusões, desejos, que histórias habitaram, por exemplo, esta casa, quase na esquina da Pedro Américo, antes certamente majestosa, e hoje reduzida a ruínas expostas à indiferença dos passantes? E que lição pode haver nisso? Nenhuma, presumo. A não ser talvez a óbvia: também nós pereceremos - e ainda antes das casas... E daí? Casas arruinadas, manchetes do dia, transeuntes alheios, concentrados em si mesmos - e o sol nos unindo e consumindo a todos: existe o Tempo, síntese final de todas essas durações que relutam contra o pó de onde vieram?
Fragmentos de conversas, palavras soltas, um mercado de velharias a céu aberto em plena Glória (que ironia semântica!). Entre todos, só o mendigo é fashion: envolto em panos coloridos desfila com elgância, como se saltado de uma passarela ou de algum livro de história antiga. Quem será ele para si mesmo em seu sonho a céu aberto? E eu mesmo, o que sou? Claro, Antonio Caetano, cronista e editor deste caderno... Muito bem, muito bem - nada mais tranquilizador do que um nome e um emprego... E este outro mendigo que nem mendigar, mendiga, absorto que está em escrever em um caderno as palavras que para si mesmo recita cuidadosamente - quem será ou o que será esse livro quimérico que constrói como se fosse sua casa, mas que jamais verá outra luz que não a de seus olhos? Não sei, nem saberei, pois talvez nem ele mesmo saiba... Não sinto pena. Sinto admiração e afinidade com ele: estamos no mesmo ramo, no mesmo barco, na mesma rua, sob o mesmo sol... Mais do que isso já seria pedir muito.