5 de janeiro de 2004
Ano novo só em março

Janeiro começa hoje. 2004 , pra valer, só em março, depois do carnaval e do verão, que nesta temporada anda de uma pluvialidade generosa até demais. Chuva entedia, entristece, ainda que o pouco sol de dezembro tenha sido de rachar. De todo mundo ouço que a cada ano o verão fica mais quente. Mesmo assim, prefiro o inferno ao inverno. Detesto frio, a não ser este, bem carioca, que acompanha o que a meteorologia chama de "frente fria". É só olhar no mapa para ver que o Rio de Janeiro é a ponta de um funil por onde circula um vai-e-vem de correntes entre a Amazônia e o Atlântico que produz temperaturas tão inesperadas...

Passou depressa 2003... Nem parece que faz um ano, eu acompanhava em Brasília a posse do Lula. Hoje, confesso, Lula também me entristece e entedia como uma chuvinha que não pára.

Talvez seja da essência do político acabar se tornando personagem de si mesmo. O marketing político - com seus estatísticos, fonoaudiólogos, consultores de estilo - é só o "aperfeiçoamento" desta "qualidade intrínseca" da figura do político na democracia desde os tempos da Grécia, com seus retóricos e sofistas. Certamente, foi a apreciação desse triste "espetáculo natural" que inspirou Winston Churchill a dizer que "a democracia é o pior de todos os governos, excetuando-se todos os outros".

A (talvez falsa) impressão que o público pagante e eleitor tem do Planalto olímpico é que até a alternância entre as gravatas bacanas e as gravatas cafonas do presidente é pensada por algum acólito do "senador" Duda Mendonça. Enfim, tudo parece calculado, encenado, produzido. E o mais engraçado é que essa teatralização de tudo é do conhecimento do distinto público. E ninguém estranha. Como no teatro ninguém estranha que a Fernanda Montenegro, aquela senhora tão simpática, comece a dar gritos e grunhidos a alguns palmos do seu nariz.

É dessa "evidente encenação" que se extraem as teorias conspiratórias. Claro: não existe conspiração sem cálculo. Daí a se acreditar que por trás de todo cálculo há um objetivo oculto que o anima é só um passo. O "caça-conspirações" crê que a encenação (ou representação, para usar uma palavra mais ambígua) é evidente apenas para melhor ocultar o seu verdadeiro sentido, como faz o mágico de salão em seus números de magia.

O público comum aceita a encenação como parte da realidade. O "caça-conspirações" crê que ela é apenas a chave decifradora do verdadeiro sentido. De uma forma ou de outra, a encenação é sempre uma promessa de sentido em face da aterradora liberdade que nos encara nos olhos. Só conhecemos um limite: a morte. É preciso a qualquer custo desvanecer essa evidência para que o homem não enlouqueça no gozo da liberdade a que está condenado. A arte, a religião, a cultura de um modo geral, servem para dar sentido à liberdade comum a tudo que é vivo. O problema é que, com o tempo, a arte, a religião e a cultura usurpam o lugar do mundo e aquilo que era regra e sentido humano é então atribuído ao mundo, à vida, a Deus. Ora, se Deus existe ele é, por definição, livre, imprevisível. Enfim, Deus, se há, é liberdade e não necessidade.
Raul Seixas gostava de repetir Alister Crowley, grande amigo de Fernando Pessoa: "Faze tudo que quiseres. Essa é a Lei". Quem tem medo, serve-se de Lula e outros pratos mais lights.