19 de janeiro de 2004
Vestida de verão

Quando deu por si, estava nua.
Não pensara nisso ao decidir-se pelo vestido novo - branco, de alcinhas, que leve lhe caía como seda pelo corpo desenhado para exibir-se, a cara do verão que lá fora se exaltara - infernal saara de concreto armado.

Olhava-se no espelho feliz porque o vestido parecia ainda mais bonito do que quando o vira pela primeira vez na vitrine da loja e o comprara de estalo quase sem hesitar. Agora, exultava.

Sutiã usava às vezes. Mas com este vestido, não combinava. Também escolhera uma calcinha que parecia inexistir sob o vestido que lhe corria pelo corpo como água contornando pedra.

Feliz, feliz em sua secreta quase nudez, ela sentia-se discretamente livre, sensual sem excessos, exata nela mesma: dona de si. Quem olhasse, pensava, a veria linda, mas não seria qualquer um que olharia. E isso a excitava: encontrar quem a descobrisse - o príncipe, ela pensava, muito alice, bastando-se. Linda assim não sentia pressa.

Foi com este espírito que deslizou pelas ruas do Centro, à mercê do sol e das sombras escassas, incertas, disputadas. Mas ela mesma vestira-se de um frescor que era como se uma brisa a acompanhasse a adulá-la. Ah, o quanto pode um vestido... E ela mesma não podia imaginar quanto, despreparada para a surpresa que a aguardava.

A entrevista marcada se atrasara um tanto, mas não se afligira e tudo ao final parecia ter corrido bem, se não fosse desta vez, quem sabe de uma outra... Telefonou para uma amiga e as duas fugiram para um café com torta de chocolate em pé no balcão do centro cultural, rindo e falando bobagens, os livros que estavam lendo, os filmes que viram, o ex-namorado que ligou, os filhos que cresciam.

- Bonito seu vestido...
- Também amei...
- Você parece uma grega assim de branco no meio desses mármores...

Sentiu vertigem ao olhar a cúpula vazada de luz no alto da rotunda. Vertigem boa: teve vontade de tirar as sandálias e dançar descalça no chão de mármore. Descalçou um pé e sem olhar o pousou no chão. Um frio manso lhe subiu até a nuca.

Ainda dava tempo de passar no teatro e da Candelária cometeu a extravagância de um táxi até à praça Tiradentes. Encontrou quem procurava e ficou satisfeita ao perceber que ao homem sua beleza inquietara. Quando saiu, ele fizera questão de levá-la até à porta e ela sentiu os olhos dele lhe queimando as costas e decidiu que iria a pé até a estação de metrô.

Mal reparou as nuvens grossas que se acumulavam velozes no horizonte entrecortado de prédios e só se deu conta que a chuva a pegaria antes que chegasse à estação quando o vento desandou insano e gotas enormes e frias começaram a estalar contra o seu corpo. Apressou o passo, mas era tarde. A chuva tornou-se violenta e intensa num átimo e não havia naquele trecho marquises onde se abrigar. Quando deu por si, estava nua, o vestido colado ao corpo como uma segunda pele.

Até chegar à estação foram instantes de comunhão com a chuva e uma remota sensação de infância. Mas ao encarar a multidão que se acumulava no caminho até o trem sentiu que desabava sobre ela o desamparo: não sabia sinceramente que postura tomar e sentiu que poderia chorar a qualquer momento. Cruzou os braços sobre os seios e tratou de descolar inutilmente o vestido das pernas e da bunda. Não gostava do escárnio no olhar dos homens. Não choraria, mas decidiu não encarar ninguém.

Foi com o canto do olho que o viu se aproximar.
- Por favor, ele disse, lhe estendendo o casaco.
Ela não teve coragem de dizer não.